uma arte muito rara



Saber desistir. Abandonar ou não abandonar - esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido em prosseguir jogando. Serei capaz de abandonar nobremente? ou sou daqueles que proseguem teimosamente esperando que aconteça alguma coisa? como, digamos, o próprio fim do mundo? ou seja lá o que for, como minha morte súbita, hipótese que tornaria supérflua minha desistência?



Clarice Lispector

Um sopro de vida - Pulsações


ocupação



o ato de escrever
ocupa metade da minha prosa e metade da minha vida
mando um bilhete pra ele: vê se desocupa
a outra metade


Ana Cristina Cesar

Antigos e Soltos


preocupação



bilhete não respondido: que ameaças
são essas?


Ana Cristina Cesar

Antigos e soltos


desocupação



preciso sair da outra metade para ceder
lugar ao iminente ato de foder.


Ana Cristina Cesar

Antigos e soltos


da adaptação



_ Não é que eu queira parar de escrever - disse Sumire. Ela refletiu por um momento. - É só que, quando tento escrever, não consigo. Sento-me à mesa e não me vem nada: nenhuma idéia, nenhuma palavra, nenhuma cena. Zero. Não muito tempo, eu tinha milhões de coisas sobre o que escrever. O que está acontecendo comigo?

_ Está me preguntando?

Sumire assentiu com um movimento da cabeça.
Bebi um gole do meu chope gelado e organizei os pensamentos.

_ Neste instante, acho que está se posicionando numa nova estrutura ficcional. Está preocupada com isso, portanto não há necessidade de colocar seu sentimentos na escrita. Além disso, anda preocupada demais.

_ Você faz isso? Você se põe dentro de uma estrutura ficcional?

_ Acho que a maior parte das pessoas vive em uma ficção. Eu não sou uma excessão. Pense nisso em termos da engrenagem de um carro. É como um câmbio entre você e a realidade austera da vida. Pega a força de fora, em estado natural, e usa a as marchas para ajustá-la de modo que fique tudo bem sincronizado. É assim que mantém seu corpo frágil intacto. Isso faz algum sentido?


Haruki Murakami

Minhas querida Sputinik

escala decrescente



escancara os membros, sente-se infiel, choraminga, confunde o sor-
riso, corre o risco. Depois fica tudo claríssimo e começa a falar
uma língua est-ranh-a.


Ana Cristina Cesar

Antigos e Soltos


do que cada um ganha com isso



Eu sou uma lutadora por natureza. Tenho uma tendência em lutar, em confrontar meus relacionamentos muito mais frequentemente do que as pessoas se importam. Sempre me falam que eu converso demais. Não é que eu não goste, mas eu habitualmente confronto antes de escapar. Mais do que sair por aí para encher a cara ou me afogar nas lágrimas. Eu me deito e rolo em cima deles. Meus amigo spensaram durante muito tempo que eu fazia isso como uma espécie de masoquismo. E eu comecei a acreditar nisso. Mas neste ponto de minha vida, eu diria que já pagou seus dividendos. Ao confrontar esta coisas e pensar muito sobre elas, tanto quanto minha inteligência limitada me permite, há uma certa riqueza e gratificação que vem junto.



Joni Mitchell

em entrevista a Rollig Stone em julho de 1979


limites do amor



Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.

O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, em empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:

- ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta.


Affonso Romano de Sant'Anna


The Couries



The word of a snail on the plate of a leaf?
It is not mine. Do not accept it.

Acetic acid in a sealed tin?
Do not accept it. It is not genuine.

A ring of gold with the sun in it?
Lies. Lies and a grief.

Frost on a leaf, the immaculate
Cauldron, talking and crackling

All to itself on the top of each
Of nine black Alps.

A disturbance in mirrors,
The sea shattering its grey one -

Love, love, my season.


Silvia Plath


XII



Dentro do círculo
Faço-me extensa.
Procuro o centro
Me distendendo.
Túlio não sabe
Que o amor se move
No seu de dentro
E me procura
Movemente, móvil
No lá de fora.

Túlio tem de mim
Se movido
Tão desatento
Como se nuvem
Já se movendo
Buscasse o vento
Como se a chuva
Toda molhada
Buscasse a água.


Hilda Hist

Mémória, júbilo, noviciado da paixão


da necessidade de mover-se



Mas o homem que se quer também desvelamento do ser, e, se coincide com essa vontade, ganha, pois o fato é que, através de sua presença no mundo, o mundo se torna presente. Mas o desvelamento implica uma perpétua tensão para manter o ser a distância, para arrancar-se do mundo e afirmar-se como liberdade: querer o desvelamento do mundo, querer-se livre, é um único movimento.



Simone de Beauvoir

Por uma moral da ambigüidade


a música e a evocação do ser amado



E quando então, ao longe, lá embaixo, alguém sonha uma canção ao som de sua mandolina, não se pensa em atribuí-la a um ser humano; sente-se que ela emana diretamente desta paisagem vasta, que não pode mais calar-se diante de sua nostálgica e estranha felicidade. O instrumento canta como uma mulher solitária que em noite profunda evoca o nome de seu amante longínquo, procurando concentrar nesta palavra pobre todo o seu carinho, o seu ardor e todos os tesouros do seu mais íntimo ser.




Rainer Maria Rilke

O diário de Florença


e o novo aponta em uma vida



os antigos amigos passavam a companheiros que se haviam atrasado no caminho, e ele não se sentia mais, em sua escola e em sua cidade, no meio de semelhantes e no lugar adequado, porém isso se embebera de uma morte furtiva, de um fluído de irrealidade, um odor de coisa parada, tornara-se uma situação provisória, um traje usado que já não combinava com nada mais. E essa emancipação de uma pátria até então harmônica e amada, esse despojar-se de uma forma de vida que não mais lhe pertencia, e lhe era inadequada, essa vida de alguém que se despede, que recebeu um apelo exterior, com horas de extrema ventura e de radiante consciência de si próprio, resultou em um enorme suplício, uma opressão e um sofrimento quase insuportáveis; ele sentia que tudo o abandonava, sem ter a certeza de de que fosse ele mesmo quem tudo abandonava, talvez o próprio culpado desse falecer, desse alheamento a seu amado mundo habitual, por sua ambição, sua presunção e orgulho, por sua infelicidade e falta de amor. Entre as dores que acompanham um verdadeiro apelo, estas são as mais amargas. Quem recebe o apelo da vocação não só recebe um dom e uma ordem, mas também torna-se culpado, assim como o soldado, chamado entre as fileiras de seus camaradas para ser elevado a oficial, tanto mais merece essa elevação quanto mais a paga com um sentimento de culpa ou mesmo de má consciência.



Herman Hesse

O jogo das contas de vidro


um amante equivocado



Sempre amei Paulina. Numa das minhas primeiras lembranças, Paulina e eu estamos ocultos numa obscura pracinha cercada de loureiros, num jardim com dois leões de pedra. Paulina me disse: "Gosto do azul, gosto das uvas, gosto do gelo, gosto das rosas, gosto dos cavalos brancos". Compreendi que minha felicidade havia começado, porque nessas preferências podia me identificar com Paulina. Nós nos parecíamos tão milagrosamente que, num livro sobre a reunião final das almas na alma do mundo, minha amiga escreveu na margem: As nossas já se reuniram."Nossas", naquele tempo, significava a minha e a dela.

Para explicar a mim mesmo essa semelhança, argumentei que eu era um apressando e remoto rascunho de Paulina. Recordo que anotei em meu caderno: Todo poema é um rascunho da Poesia e em cada coisa há uma prefiguração de Deus. Pensei também: "Enquanto me parecer com Paulina estarei a salvo". Via (e ainda vejo hoje) a identificação com Paulina como a melhor possibilidade do meu ser, como o refúgio onde eu me livraria de meus defeitos naturais, da torpeza, da negligência, da futilidade.



Adolfo Bioy Casares

Em Memória de Paulina, em Histórias Fantásticas


do prazer



o prazer não é algo que se tome ou que se dê. Ele é um jeito de dar-se e de pedir ao outro a doação de si. Nós nos doamos inteiramente um ao outro.



André Gorz

Carta a D


da ferocidade do viver



é preciso não esquecer e respeitar a violência que temos. As pequenas violências nos salvam das grandes. Quem sabe, se não comêssemos os bichos, comêssemos gente com seu sangue. Nossa vida é truculenta, Loreley: nasce-se com sangue e com sangue corta-se para sempre a possibilidade de união perfeita: o cordão umbilical. E muitos são os que morrem com sangue derramado por dentro ou por fora. É preciso acreditar no sangue como parte importante da vida. A truculência é amor também.



Clarice Lispector

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres


ausência



Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


Carlos Drummond de Andrade


do conhecimento trocado



Conto ao senhor é o que sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


cabeceira



Intratável.
Não quero mais pôr poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
muito sóbria e dura,
não pergunto
"da sombra daquele beijo
que farei?"
É inútil
ficar à escuta
ou manobrar a lupa
da adivinhação.
Dito isto
o livro de cabeceira cai no chão.
Tua mão desliza
distraidamente?
sobre a minha mão


Ana Cristina Cesar

Inétidos e dispersos


a linguagem do outro



A linguagem literária era a linguagem por excelência, quando na realidade social havia, como ainda continua a haver uma quantidade de outras linguagens separadas da literatura. Por conseguinte, linguagem literária ocupa uma posição excêntrica entre em relação a todas as linguagens reais, e ao mesmo tempo, uma posição transcendente, como se ela fosse a componente, e de certo modo a síntese, de todas essas linguagens. Isso constitui um equívoco que faz com que a literatura seja constantemente ameaçada pelos grandes abalos sociais, precisamente porque há uma sociedade e, melhor dizendo, uma ideologia da linguagem literária. [RB]


Não seria melhor encarar o problema ao nível daquele que escreve? É um indivíduo separado dos outros e que se coloca já à parte ao utilizar para um certo fim uma linguagem que não é a de toda a gente, e que só se tornará linguagem literária no termo de seu trabalho. Ainda que esteja submetido a todas as determinações que tu sugeres, não deixa de se entregar a um trabalho solitário. [MN]


Roland Barthes e Maurice Nadeau

Para/ Ou onde vai a literatura


da consciência



[...] Hoshino se lembrou da própria infância. Dos tempos em que ia diariamente pegar peixes num ribeirão próximo à sua casa. Bons tempos aqueles em que não tivera de pensar em nada. Só tivera de viver a vida como ela era. Vivendo, era alguma coisa. De maneira natural. Mas deixou de ser assim a partir de um certo tempo que não consigo definir com exatidão. Viver, apenas, passara a não significar que eu não era alguma coisa. Que história mais maluca, não é mesmo? Afinal, as pessoas nascem para viver, certo? Em vez disso, parece até que quanto mais eu vivia, mais perdia o conteúdo, isto é, me transformava num homem vazio por dentro. E pode ser que daqui para a frente, quanto mais eu viver mais vazio e insignificante eu me torne. Mas isso está errado. Não tem pé nem cabeça. Será que posso mudar o rumo dos acontecimentos?




Haruki Murakami

Kafka à beira-mar


da feitura do poema



Os momentos que antecedem o surgimento de um poema, quando ocorre a expansão da consciência e você percebe que existe um poema em algum lugar, você se prepara. Eu corro ao redor da casa, saltitando, é uma exaltação maravilhosa. É como se pudesse voar, quase, e sinto-me muito tensa antes de ter contato com a verdade – a verdade dura. Então sento-me e dou a partida.



[...]



Acredito que sou muitas pessoas. Quando estou escrevendo um poema, sinto que sou a pessoa que deveria tê-lo escrito. Assumo com freqüência esses disfarces; eu os abordo como faria um romancista. Às vezes me torno outra pessoa, e quando isso acontece, acredito – mesmo nos momentos em que não estou escrevendo o poema – que sou essa pessoa.



Anne Sexton em entrevista a The Paris Review

Escritoras e a arte da escrita


o encanto do que não se explica



A beleza é uma forma de gênio... mais elevada até que o gênio, pois dispensa explicação. Faz parte dos grandes fatos do universo, como a luz do sol, ou a primavera, ou o reflexo nas águas escuras, dessa concha de prata que chamamos lua. A beleza não sofre contestação.



Oscar Wilde

O retrato de Dorian Grey


II



Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que nosso tempo é agora.
Esplêndida avidez, vasta ventura
Porque mais vasto é o sonho que elabora

Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza
E transitória se tu me repensas.


Hilda Hilst

Júbilo, memória, noviciado da paixão


da responsabilidade individual



Não se pode dizer primeiro que nosso destino terrestre tem ou não tem importância, pois depende de nós conceder-lhe uma.



Simone de Beauvoir

Por uma moral da ambigüidade


os bobos da corte e sua arte



Nas cortes é uma velha e sábia tradição que o Bobo ou Jogral ou Poeta tenha por função reverter os valores sobre os quais o soberano baseia seu domínio, e zombar deles, e lhe demosntrar que toda linha reta oculta um desvio tortuoso, todo produto acabado um desconjuntar de peças que não se ajustam, todo discurso contínuo um blablablá. Todavia, há vezes em que estes chistes provocam no Rei uma vaga inquietação: essa também está decerto prevista, até mesma garantida por contrato entre o Rei e seu Jogral, mas nem por isso deixa de ser um tanto inquietante, não só porque a única maneira de desfrutar uma inquietação é inquietando-se, mas principalmente porque ele se inquieta de verdade.



Italo Calvino

O castelo dos destinos cruzados


minha culpa



Sei lá! Sei lá! Eu Sei lá bem
Quem sou? Um fogo-fatuo, uma miragem…
Sou um reflexo… um canto de paisagem
Ou apenas cenário! Um vaivém

Como a sorte: hoje aqui, depois além!
Sei lá quem sou? Sei lá! Sou a roupagem
De um doido que partiu numa romagem
E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!...

Sou um verme que um dia quis ser astro..
Uma estatua truncada de alabastro...
Uma chaga sangrenta do Senhor...

Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,
Num mundo de maldades e pecados,
Sou mais um mau, sou mais um pecador...


Florbela Espanca

Charneca em flor


aos olhos



O verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível...



Oscar Wilde

O retrato de Dorian Gray


Ante-sonho



O súbito preamar
amor prelúdio
anuncia.

Inesperadas estrelas
silhuetas
que se unem
ajuntam.

Céus sem vácuo
Véus caindo
ainda findam.


Ana Cristina Cesar

Inéditos e dispersos


o herói e as máquinas II



Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando as brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a máquina. A Máquina era que matava os os homens, porém os homens que mandavam na Máquina... Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da da máquina sem sem mistério sem querer sem fastio, incapaz de de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço de um arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu:

- Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta. Há empate.

Não concluiu mais nada porque inda nã estava acostumado com discursos porém palpitava pra ele muito embrulhadamente muito! que a máquina devia de ser um deus de quem os homens não eram verdadeiramente donos só porque não tinham feito dela uma Iara explicável mas apenas uma realidade do mundo.



Mário de Andrade

Macunaíma


o herói e as máquinas



as três cunhãs deram muitas risadas e falaram que isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha deus e que com máquina ninguém brinca não porque ela mata. A máquina não era deus não, nem possuia os distintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com fumo, os homens aproveitando as forças da natureza. Porém jacaré acreditou? nem o herói! Se levantou na cama e com um gesto, esse sim! bem guaçu de desdém, tó! batendo o antebraço esquerdo dentro do outro dobrado, mexeu com força a munheca direita e pras três cunhãs e partiu. Nesse instante, falam, ele inventou o gesto famanado de ofensa: a pacova.



Mário de Andrade

Macunaíma


motivo



Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.


Cecília Meireles

Obras Completas


das matérias primas



não é mesmo com bons sentimentos que se faz literatura: a vida também não. Mas há algo que não é bom sentimento. É uma delicadeza de vida que inclusive exige a maior coragem para aceitá-la.



Clarice Lispector

Uma apredizagem ou O livro dos prazeres


sobre os capazes de dizer



Quando as ditaduras forem reduzidas a zero, a sociedade humana precisará de verdades, e justamente verdades impopulares. Essas verdades que se relacionam com razões não reconhecidas do atual caos social prevalecerão finalmente, quer queria ou não o povo. Uma dessas verdades é que a ditadura tem suas raízes no medo irracional das massas à vida. Aquele que expõe essas verdades se arrisca muito – mas pode esperar. Não se sente forçado a lutar pelo poder para revelar sua verdade. Seu poder reside no seu conhecimento dos fatos que, em geral, pertencem ao gênero humano. Não importam quão desagradáveis possam ser esses fatos; em tempos de exigência social extrema o desejo de viver da sociedade força-la-á a reconhecê-los, apesar de tudo o mais.



Wilhelm Reich

A função do orgasmo


da verdadeira educação



Bem, de fato ela [a literatura] nos educa sobre a vida. Não seria a pessoa que sou, não compreenderia o que compreendo se não fossem alguns livros. Estou pensando na grande questão russa do século XIX: como se deveria viver? Um romance que merece ser lido é um aprendizado do coração. Alarga o sentido das possibilidades humanas, do que é a natureza humana, do que acontece no mundo. É um criador de vida interior.



Susan Sontag em entrevista a The Paris Review

Escritoras e a arte da escrita


a raposa



– Minha vida é monótona. Eu caço galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens também. Mas se tu me cativas, minha vida será como cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar para debaixo da terra. Os teus me chamarão para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês lá longe, os campos de trigo? Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos dourados. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará com que eu me lembre de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...

(...)

– A gente só conhece bem as coisas que cativou – disse a raposa. – O homens não tem mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo já pronto nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não tem mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!

– Que é preciso fazer? – perguntou o pequeno príncipe.

– É preciso ser paciente – respondeu a raposa. – Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas a cada dia, te sentarás um pouco mais perto...

No dia seguinte o príncipe voltou.

– Teria sido melhor se voltasses à mesma hora – disse a raposa. – Se vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde às três começarei a ser feliz! Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade!



Antoine de Saint-Exupéry

O pequeno príncipe


do encontro



– Comigo você falará sua alma toda, mesmo em silêncio. Eu falarei minha alma toda, e nós não nos esgotaremos porque a alma é infinita. E além disso, temos dois corpos que nos será um prazer alegre, mudo, profundo.


Clarice Lispector

Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres


poética



Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


Manuel Bandeira


elegia ao primeiro amigo



Seguramente não sou eu
Ou antes: não é o ser que sou, sem finalidade e sem história
É antes uma vontade indizível de te falar docemente
Neste momento de solidão e desmesurado perigo em que me [encontro.

[...]

Seguramente não é a minha forma:
A forma que uma tarde, na montanha, entrevi, e que me fez
[tão tristemente temer minha própria poesia.
É apenas um prenúncio do mistério
Um suspiro da morte íntima, ainda não desencantada...
Vim para ser lembrado
Para ser tocado de emoção, para chorar
Vim para ouvir o mar contigo

[...]


Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza.
Tudo me merece um olhar. Trago
No dedos um constante afago para afagar; na boca
Um constante beijo pra beijar; meu olhos
Acarinham sem ver [...]


Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente


[...] Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque em mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo. Se não fosse delicado
Já não seria mais. Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao [absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza


Seguramente não sou eu:
É a tarde, talvez assim parada
Me impedindo de pensar

[...]


Vinicius de Moraes

Cinco elegias, Antologia poética


dos questionamentos



A palavra escrita apascenta paixões? Ou submete as forças da natureza? Ou se encontra em harmonia com a desumanidade do universo? Ou gera uma violência contida mas sempre pronta a arremessar-se, a dilacerar?



Italo Calvino

O castelo dos destinos cruzados


alta tensão



eu gosto dos venenos mais lentos
dos cafés mais amargos
das bebidas mais fortes
e tenho
apetites vorazes
uns rapazes
que vejo passar
eu sonho
os delírios mais soltos
e os gestos mais loucos
que há
e sinto
uns desejos vulgares
navegar por uns mares
de lá
você pode me empurrar pro precipício
não me importo com isso
eu adoro voar.


Bruna Lombardi

O perigo do dragão


bichinho danado



Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Carlos Drummond de Andrade

ps. o título da postagem não é o do poema.


como deve falar uma mulher



Dizem que a mulher deve ser uma ajudante do marido. Para que eu preciso de ajudante? Posso bem ajudar a mim próprio. A mulher deve falar com o marido, mas sem blablablá, devem ser conversas inteligentes e sensíveis. O que é a vida sem uma boa conversa?



Anton Tchekov

Minha vida


para evitar a perdição



Nós, os que escrevemos, temos na palavra humana, escrita ou falada, grande mistério que não quero desvendar com meu raciocínio que é frio. Tenho que não indagar do mistério para não trair o milagre. Quem escreve ou pinta ou ensina ou dança ou faz cálculos em termos de matemática, faz milagre todos os dias. É uma grande aventura e exige muita coragem e devoção e muita humildade em viver. Mas ao escrever sou fatalmente humilde. Embora com limites. Pois no dia em que eu perder dentro de mim a minha própria importância – tudo estará perdido.



Clarice Lispector

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres


do desapego



a brandura de botar pra se esquecer uma porção de coisas – as bestas coisas em que a gente no fazer e no pensar vive preso, só por precisão, mas sem fidalguia.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


Macunaíma e a metrópole



A inteligência do herói estava muito perturbada. Acordou com os berros da bicharia lá em baixo nas ruas, disparando entre as malocas temíveis. E o diacho daquele sagüi-açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho em que dormira... Que mundo de bichos! que despropósito de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos nas sovacas nas cordas dos morros furados por grotões donde gentama saía muito branquinha branquíssima, decerto a filharada da mandioca!... A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhãs rindo tinham ensinado a ele que o sagüi-açu não era sagüim não, chamava elevador e era uma máquina.

De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças-pardas não eram onças-pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas.Os tamanduás os boitatás as inajás de caruatás de fumo em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés... Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel escutando assuntando maquinando numa cisma assombrada. Tomou um respeito cheio de inveja por essa deusa deveras forçuda, Tupã famanado que os filhos da mandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira que a Mãe-d'Água, em bulhas de sarapantar.

Então o herói resolveu ir brincar com a Máquina pra ser também imperador dos filhos da mandioca.



Mario de Andrade

Macunaíma


entre o escrito e o vivido



A escrita tem em suma um subsolo que pertente á espécie, ou pelo menos à civilização, ou pelo menos a certas categorias de renda. E eu? E esse tanto ou quanto de particularmente pessoal que pensava aí meter? Se posso evocar a sombra de um autor para acompanhar meus passos hesitantes nos territórios do destino individual, do eu, do (como agora chamam) "vivido", esta há de ser a do Egoísta de Grenoble, do provinciano à conquista do mundo, que antigamente lia como se esperasse dele a história que eu devia escrever (ou viver: havia uma confusão entre os dois verbos, nele, ou no eu de então.



Italo Cavino

O castelo dos destinos cruzados

das tentações



Mas o mais valoroso dos seres humanos tem medo de si mesmo. A mutilação do selvagem subsiste tragicamente na renúncia que nos estraga a vida. Somos punidos pelo que enjeitamos. Todo impulso que nos empenhamos em sufocar no encuba o espírito e nos envenena. Peque o corpo uma vez, e estará livre do pecado, porque a ação tem um dom purificador. Nada restará então, salvo a lembrança de um prazer; ou a volúpia de um arrependimento. A única maneira de se livrar de uma tentação é ceder-lhe.



Oscar Wilde

O retrato de Dorian Grey


memória



Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.


Carlos Drummond de Andrade


sobre alma irmã da minha



E não é verdade que o reconhecimento da liberdade de outrem limite minha própria liberdade: ser livre não é ter o poder de fazer qualquer coisa; é poder superar o dado rumo a um futuro aberto; a existência de outrem enquanto liberdade define minha situação e ela é até a condição de minha própria liberdade.



Simone de Beavoir

Por uma moral da ambigüidade


poema óbvio



Não sou idêntica a mim mesmo
sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob
[o mesmo ponto de vista
Não sou divina, não tenho causa
Não tenho razão de ser nem finalidade própria:
Sou a própria lógica circundante

Ana Cristina Cesar


Inéditos e dispersos


dos signos que não salvam



Para dispor as cartas, as mãos do jovem ora procedem por oscilações ou movimentos bruscos nas seqüências, ora se contorcem, como que "chorando" cada carta já jogada que mais valia para outro jogo, ora se deixam ir em gestos de mole indiferença como a significar que tanto a carta quanto o poço são iguais como as copas que se repetem idênticas no jogo, como no mundo das coisas uniformes os objetos e os destinos que se escancaram diante de nós, intercambiáveis e imutáveis, e quem pensa que decide não passa de um iludido.
Como explicar que para a sede que tem no corpo não lhe basta nem um poço nem outro?



Italo Calvino

O castelo dos destinos cruzados


do tempo presente



Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro.



Clarice Lispector

Um sopro de vida - Pulsações


I



Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, sem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez
E mais atento.


Hilda Hilst

Júbilo, memória, noviciado da paixão


da dessacralização do escrito



Sabemos agora que o texto não é feito um linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a mensagem de um Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, ds quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura.



Roland Barthes

A morte do autor
em O rumor da língua


porque o segredo é a mistura



eu careço que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro lado o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio em si; mas transtraz a esperança mesmo no meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


da resiliência



eu amo a vida, eis a minha verdadeira fraqueza. Amo-a tanto, que não tenho nenhuma imaginação para o que não for vida. Tal avidez tem algo de plebeu, naõ acha? a aristocracia não se concebe sem um pouco de distância em relação a si mesma e à própria vida. Morre-se se for preciso, antes quebrar que dobrar. Mas, eu, eu me dobro, porque continuo a me amar.



Albert Camus

A queda


das perspectivas particulares



Com efeito, por todo o lado se via sujeira e embriaguez, estupidez e desonestidade, mas apesar disso eu sentia que a vida do mujique em geral se assentava sobre uma base forte e sã. Por mais que os camponeses atrás do seu arado me parecessem animais desajeitados, e por mais que se embebedassem com vodca, quando os olhada de perto sentia que existia neles qualquer coisa de necessário e muito importante, que não existia, por exemplo em Macha e no doutor Blagov. Acima de tudo, eram pessoas que que acreditavam que o mais importante na terra era a verdade, e que sua salvação e a de todos estava unicamente na verdade, e por isso o que mais apreciavam na vida era a justiça. Eu dizia a minha mulher que ela via as manchas no cristal, mas não via o próprio cristal. Como resposta ela calava-se ou punha-se a cantarolar [...]

Quando essa mulher boa, inteligente, empalidecia de indignação, e com a voz trêmula conversava com o médico sobre bebedeiras e desonestidades, eu me impressionava e ficava perplexo com sua capacidade de esquecer. Como podia esquecer que seu próprio pai, o engenheiro, também bebia, bebia muito, e que o dinheiro com o qual Dubetchnia tinha sido comprada, ele o conseguira através de uma série de logros imorais e cínicos? Como podia esquecer tudo isso?



Anton Tchekov

Minha vida


da criança dentro de cada um



Da janela eu vejo os garotos no pátio do colégio, durante o recreio. Sempre me dá uma certa saudade, porque eu já fui menino. Aliás, embora pareça incrível, até mesmo pessoas como Jânio Quadros e Dom Hélder Câmara ou mesmo a verenanda Tia Zulmira já foram crianças. O importante não deixar nunca que o menino morra completamente dentro da gente, quando a gente fica adulta. Pobre daquele que abdicar completamente dos gosto infantis. Ficará velho mais depressa. O menino que a pessoa conserva dentro de si é um obstáculo no caminho da velhice.Dizem que é por isso que os chineses - de incontestável sabedoria - conservam o hábito de soltar papagaio (ou pipa, se preferirem) mesmo depois de homens feitos. Não sei se é verdade. Nunca fui chinês.



Stanislaw Ponte Preta

Gol de padre, em Rosamundo e os outros


da arte do encontro



uma boa conversa é estimulante e irresistível, não é só transmitir informações ou compartilhar emoções, tampouco apenas um modo de incutir idéias na cabeça de outras pessoas. Toda conversa é um encontro de dois espíritos que possuem lembranças e hábitos diversos. Quando espíritos se encontram, não se limitam a trocar fatos: eles os transformam, dão lhes nova forma, tiram deles implicações diferentes, empreendem um novo encadeamento de pensamentos. "Conversar não é apenas reembaralhar as cartas: é criar novas cartas para o baralho. O aspecto da prática da conversa que mais me estimula é o fato de poder mudar os sentimentos, as idéias e a maneira como vemos o mundo, além de poder mudar até mesmo o próprio mundo."

Regina Navarro Lins


A cama na varanda
citando Theodore Zeldin


diferentes artes e seus públicos



Esta educação artística errada distorceu todos os conceitos: espera-se que de repente o artista se torne uma espécie de tio que apresenta um divertimento dominical que apresenta aos seus sobrinhos e às suas sobrinhas (ao distinto público): sua obra. Ele pinta um quadro ou cria uma estátua com seu cinzel. Para quê? Meu Deus: para agradar a fulano e sicrano nos quais não está nem um pouco interessado, para estimular a sua digestão preguiçosa por meio desta boa idéia, e para decorar suas salas com a obra condescendente.

É assim que o público quer o artista; decorre daí este medo filisteu de tudo o que a arte pode apresentar de desagradável, de triste ou trágico, de nostálgico e ilimitado, de terrível e ameçador – aspectos que já existem em quantidade suficiente na nossa vida. Eis a razão da preferência pela alegria inocente, pelo lúdico, inofensivo, insípido, picante – pela arte, em suma, de filisteus para filisteus, que se possa usufruir como uma sesta ou uma pitada de tabaco.



Rainer Maria Rilke

O diário de Florença


sobre o execício d' escritura



Tudo isto é como um sonho que a palavra traz em si e que passando através daquele que escreve liberta a si mesma e a ele também. Na escrita o que fala é o reprimido.



Italo Calvino

O castelo dos destinos cruzados


sobre mãos muito leves



Como terei orgulho do ridículo de passar bilhetes pela porta.
Esta mesma porta hoje fecho com cuidado; altivo.
Como não repetirei, a teus pés, que o profissional esconde no
índice onomástico os ladrões de quem roubei versos de amor
com que te cerco.
Te cerco tanto que é impossível fazer blitz e flagrar a
ladroagem.


Ana Cristina Cesar

Inéditos e dispersos

ps. o título da postagem não corresponde ao título do poema.


os domínios do selvagem



La Loba, a Velha, Aquela que Sabe, está dentro de nós. Ela viceja na mais profunda alma-psique da mulheres, antiga e vital da Mulher Selvagem. [...] Essa velha está entre os universos da racionalidade e do mito. Esse espaço entre os mundos é aquele lugar inexplicável que todas reconhecemos uma vez quando passamos por ele, porém suas nuances se esvaem e têm a forma alterada se quisermos defini-las, a não ser quando recorremos à poesia, à música, à dança... ou às histórias.



Clarissa Estés

Mulheres que correm com os lobos


das ocupações de cada um



Minha alegria é áspera e eficaz, e não se compraz em si mesma, é revolucionária. Todas as pessoas poderiam ter essa alegria, mas estão ocupadas demais em ser cordeiros de deuses.



Clarice Lispector

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres


passeio ao campo



Meu amor! Meu amante! Meu amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!

Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina…
Pele doirada de alabastro antigo…
Frágeis mãos de madona florentina…
- Vamos correr e rir por entre o trigo! -

Há rendas de gramíneas pelos montes…
Papoilas rubras nos trigais maduros…
Água azulada a cintilar nas fontes…

E à volta, Amor… tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras…


Florbela Espanca

Charneca em flor


sobre a ilusão da autoria



lingüisticamente, o autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como "eu" outra coisa não é senão aquele que diz "eu": a linguagem conhece um "sujeito", não uma "pessoa", e esse sujeito, vazio fora da enunciação que o define, basta para "sustentar" a linguagem, isto é, para exauri-la.



Roland Barthes

A morte do autor
em O rumor da língua


da busca do homem por um éden



o homo sapiens não procura a porta para entrar no reino milenar (embora isso não fosse nada mau, na realidade), mas apenas para fechá-la atrás de si e balançar o rabo como um cachorro contente, sabendo que o sapato da porra dessa vida ficou para trás, arrebentando-se contra a porta fechada, e que o pobr olho do cu poderá, então, começar a repousar, que ele, sim, ele o homo sapiens poderá endireitar-se e caminhar entre as flores do jardim e sentar-se para olhar para um nuvem durante apenas cinco mil anos, ou vinte mil se for possível, e se ninguém o vier incomodar e se houver a possibilidade de ficar no jardim, olhando as pequenas flores.



Julio Cortázar

O jogo da amarelinha
capítulo 71


da conjugação diária e necessária



A liberdade é a fonte de que surgem todas as significações e todos os valores; ela é a condição original de toda justificação da existência; o homem que busca justificar sua vida deve querer antes de tudo e absolutamente a própria liberdade: ao mesmo tempo que ela exige a realização de fins concretos, de projetos singulares, ela se exige universalmente. Ela não é um valor inteiramente construído que se proporia de fora a minha adesão abstrata, mas a aparece (...) como causa em si: ela é convocada necessariamente pelos valores que afirma e através dos quais se afirma; ela não pode fundar uma recusa de si mesma, pois ao recusar-se recusaria a possibilidade de qualquer fundamento.



Simone de Beauvoir

Por uma moral da ambigüidade


Poesia



Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.


Carlos Drummond de Andrade


dos venenos e seus remédios



Nada pode curar a alma, senão os sentidos: como não há, para curar os sentidos, nada como a alma.



Oscar Wilde

O retrato de Dorian Grey


da coragem que liberta



Hoje, sei: medo meditado, foi isto. Medo de errar. Sempre tive. Medo de errar é que a minha paciência. Mal. O senhor fia? Pudesse tirar de si esse medo de errar, a gente estava salva.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


ou é ou não é



Onde me conhecem honras me dão, onde não me conhecem me darão ou não!



Mário de Andrade

Macunaíma


uma questão de ponto de vista



a matéria do escrever não estará toda por acaso nesse resurgir à superfície de grifos peludos, assanhamentos caninos, chifradas caprinas, violências interditas que bacejam nas trevas? Mas a coisa pode ser vista de duas maneiras: que este fervilhar demoníaco no interior das pessoas singulares e plurais, nas coisas feitas ou que se acredita fazer, e nas palavras ditas e que se acredita dizer, seja um modo de fazer ou de dizer que algo não está bem e convém, portanto, engolir tudo de novo, ou em vez disso seja precisamente o que mais conta e visto que ali está seja aconselhável fazê-lo vir a furo; dois modos de ver a coisa que se podem depois misturar de várias maneiras, porque pode ser que o negativo, por exemplo, seja negativo mas necessário porque sem ele o positivo não seria positivo, ou ainda que não seja de fato negativo e que o único fato de negativo seja aquele que se toma por positivo.



Italo Calvino

O castelo dos destinos cruzados


sobre o batismo de sangue necessário



-Talvez esteja me faltando alguma coisa. Alguma coisa que necessariamente se deve ter para ser um romancista.

Seguiu-se um longo silêncio. Parecia que estava pedindo a minha humilde opinião.

Depois de algum tempo, comecei a falar.

- Muito tempo atrás, na China havia cidades circundadas por muros altos, com portões enormes, suntuosos. Os portões não eram apenas portas que permitiam a entrada e saída de pessoas. Eles tinham uma grande importância. As pessoas acreditavam que a alma da cidade residia nos portões. Ou que, pelo menos deveria ali residir. Como na Europa, na Idade Média, quando as pessoas achavam que o coração da cidade ficava em sua catedral e na praça central. Por isso, até hoje, na China, há uma porção de portões maravilhosos ainda de pé. Sabe como construiram esses portões?

- Não faço a menor idéia - respondeu Sumire.

- As pessoas levavam carretas aos campos e coletavam ossos descorados que haviam sido enterrados ou que se espalhavam por ali. A China é uma bonita região, um monte de antigos campos de batalha, por isso nunca precisaram buscar muito longe. Na entrada da cidade, construíram um portão imenso e o vedadam com os ossos dentro. Esperavam que, homenageando-os dessa maneira, os soldados mortos continuariam a proteger a sua cidade. E tem mais. Quando o portão era concluído, levavam vários cachorros, cortavam suas gargantas e borrifavam o portão com seu sangue. Somente misturando sangue fresco com ossos exangues, a alma antiga dos mortos reviveria magicamente. Pelo menos essa era a idéia.

Sumire esperou em silêncio que eu prosseguisse.

- Escrever romances é a mesma coisa. Juntam-se os ossos, faz-se o portão, porém não importa o quão maravilhoso se torne, só isso não torna o romance vivo, que respira. Uma história não é algo deste mundo. Uma verdadeira história requer uma espécie de batismo mágico para ligar o mundo deste lado ao mundo do outro lado.

- O que está dizendo é que eu preciso partir sozinha e encontrar meu próprio cachorro?

Concordei com um movimento de cabeça.

- E derramar sangue fresco?

Sumire mordeu o lábio e refletiu. Lançou outra pedra impotente no lago.

- Eu realmente não quero matar um animal, se puder evitá-lo.

- É uma metáfora - disse eu. - Não precisa matar de verdade coisa nenhuma.



Haruki Murakami

Minha querida Sputnik


do peso que não nos pertence



Não existe nada mais pesado que a compaixão. Mesmo nossa própria dor não é tão pesada como a dor co-sentida com outro, pelo outro, no lugar do outro, multiplicada pela imaginação, prolongada em centenas de ecos.



Milan Kundera

A insustentável leveza do ser

Estou atrás



do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra


Ana Cristina Cesar

Inéditos e dispersos


dos reconhecimentos



parem
eu confesso
sou poeta

cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face

parem
eu confesso
sou poeta

só meu amor é meu deus

eu sou o seu profeta


Paulo Leminski

ps. o título da postagem não é o do poema


das coisas inordenáveis



O verbo ler não suporta o imperativo. Aversão que partilha com alguns outros: o verbo "amar" ... o verbo "sonhar" ... Bem, é sempre possível tentar, é claro. Vamos lá: "Me ame!" "Sonhe!" "Leia!" "Leia logo, que diabo, estou mandando você ler!"

- Vá para o seu quarto e lei!
Resultado?
Nulo.
Ele dormiu em cima do livro.



Daniel Pennac

Como um romance


da carta de Maga a seu filho II



Há uma coisa que se chama tempo, Rocamadour, é como um bicho que anda e anda. Não posso explicar porque ainda és muito pequeno, mas quero dizer que Horacio vai chegar daqui há pouco. Achas que devo deixar ele ler esta carta, para que também te escreva qualquer coisa? Não, eu não desejaria que outra pessoa lesse uma carta que fosse somente para mim. Um grande segredo entre nós Rocamadour. Já não choro mais, estou contente, mas é tão difícil entender as coisas, preciso tanto tempo para entender um pouco daquilo que Horacio e os outros compreendem tão depressa; mas eles, que tudo compreendem tão bem, nãopodem compreender nem a ti, nem a mim, não compreendem que não posso te ter comigo, te dar de comer, e trocar tuas fraldas, te fazer dormir ou brincar, não compreendem e, na realidade, pouco se importam. Só eu que tanto me importo, sei que não posso te ter comigo, sei que isso é muito ruim para nó dois, sei que preciso estar sozinha com Horacio, quem sabe até quando, ajudando-o a procurar o que ele procura e que tu também procurarás, Rocamadour, porque serás um homem e também procurarás como um grande tolo.



Julio Cortázar

O jogo da amarelinha
capítulo 32


da importância da poesia



Faço poesia não porque seja poeta mas para exercitar minha alma, é o exercício mais profundo do homem.



Clarice Lispector

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres


nestes dias de verão



Sinto, por assim dizer, o ritmo de uma respiração mais profunda, em comparação com o qual meu respirar não passa de um saltitar infantil, e nesta fortaleza tenho a estranha sensação de liberdade e de medo, semelhante à de uma criança que carrega sobre os ombros a ar madura de um ancestral e que, ao lado da alegria que lhe infunde o brilho da sua investidura, já sente o peso doloroso da couraça que, em breve, a despojará de seu orgulho infantil e a obrigará a dobrar os joelhos trêmulos.



Rainer Maria Rilke

O diário de Florença


se não houver um deus



Mas se o homem é livre para definir ele próprio as condições de uma vida válida a seus próprios olhos, ele não pode escolher qualquer coisa, e agir de qualquer modo? Dostoievski afirmava: "Se Deus não existe, tudo é permitido". [...] Entretanto, estamos longe de que a ausência de Deus autorize toda licença; é, ao contrário, porque o homem está desamparado sobre a terra que seus atos são engajamentos definitivos, absolutos, ele carrega a responsabilidade de um mundo que não é a obra de uma potência estrangeira, mas dele mesmo, e no qual se inscrevem tanto suas derrotas quanto suas vitórias. Um Deus pode perdoar, apagar, compensar; mas se deus não existe, as faltas do homem são inexpiáveis.



Simone de Beauvoir

Por uma moral da ambigüidade


não há vagas



O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço


o poema, senhores,
não fede
nem cheira



Ferreira Gullar

Dentro da noite veloz


do barato



Mas existe um realidade percebida, e o ser humano não pode tolerá-la e aí altera a percepção. Desde que o homem é homem, ele procura milhares de vias, as mais conhecidas sendo o álcool e as drogas em geral, naturais ou não. A música é isso, a música não é senão isso, o único intermediário é o ouvido, ela vai direto e afeta quem a ouve, nunca deixa de afetar, de uma maneira ou de outra.



João Ubaldo Ribeiro

A casa dos budas ditosos


da força necessária ao exercício



Porque a beleza é o gesto involuntário, próprio de determinada personalidade. Ela torna-se tanto mais perfeita, quanto mais estiver livre do medo e da inquietação, quanto mais seguro estiver o artista para percorrer o caminho que conduz à sua realização mais sagrada.



Rainer Maria Rilke

O diário de Florença


sobre tudo o que fica



apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme


Paulo Leminski

ps. o título da postagem não é o do poema.



conheça-te a ti mesmo



Acho difícil falar sobre mim mesmo. Sempre tropeço no eterno paradoxo quem sou eu? Claro, ninguém conhece tantos dados sobre mim quanto eu. Mas quando falo de mim mesmo, todo tipo de outros fatores - valores, padrões, minhas próprias limitações enquanto observador - faz de mim, o narrador, selecionar e eliminar coisas sobre mim, o narrado. Sempre me perturbou o pensamento de que não estou pintando um quadro muito objetivo de mim mesmo.

Este tipo de coisa não parece incomodar a maior parte das pessoas. Tendo oportunidade, mostram-se surpreendentemente francas quando falam de si mesmas. "Sou franco e aberto em um nível absurdo", dirão, ou "Sou muito suscetível, não sou do tipo que se move no mundo com facilidade". Ou "Sou bom em sentir o verdadeiro sentimento dos outros". Porém, muitas vezes, vi pessoas que dizem se magoar facilmente magoarem o outro sem uma razão aparente. Gente que se diz franca e aberta, sem se dar conta do que está fazendo, usa descuidadamente alguma desculpa oportunista para conseguir o que quer. E aqueles "bons em sentirem os verdadeiros sentimentos dos outros" são enganados pela bajulação mais aparente. É o bastante para me fazer perguntar: O quanto realmente nos conhecemos?




Haruki Murakami

Minha querida sputnik


sobre Ela



A Mulher Selvagem como arquétipo é uma força inimitável e inefável que traz para a humanidade um abundante repertório de idéias, imagens e particularidades. O arquétipo existe por toda a parte e, no entanto, não é visível no sentido comum da palavra. O que ser pode ser visto dele no escuro não é visível a luz do dia.



Clarissa Estés

Mulheres que correm com os lobos


o homem público nº1 (antologia)



Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.


Ana Cristina Cesar

A teus pés


tudo da mesma matéria



Hoje, eu penso, o senhor sabe: acho que o sentir da gente volteia, mas em certos modos, rodando em si mas por regras. O prazer muito vira medo, o medo vira ódio, o ódio vira esses desesperos? – desespero é bom que vire a maior tristeza, constante então para um amor – quanta saudade... – ; aí outra esperança já vem... Mas brasinha, de tudo, é só o mesmo carvão só.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


da carta de Maga a seu filho



Rocamadour, já sei que és como um espelho. Estás dormindo ou olhando os pés. Eu aqui seguro um espelho e creio que és tu. Mas não acredito nisso, escrevo-te porque não sabes ler. Se soubesses, não te escreveria ou escreveria coisas importantes. O dia chegará em que terei de escrever para recomendar que tu te comportes ou que te agasalhes. Parece incrível que alguma vez Rocamadour. Agora, somente te escrevo no espelho, de vez em quando tento secar o dedo, porque fica molhado com as lágrimas. Por que, Roucamadour? Não estou triste, tua mamãe é uma tola, queimei o borsch que tinha feito para Horacio; sabe muito bem quem é Horacio, Rocamadour, é aquele senhor que, no domingo, levou-te um coelhinho de feltro e que se aborrecia muito porque tu e eu falávamos tanto e ele queria voltar a Paris; foi então que começaste a chorar e ele mostrou como o coelhinho mexia as orelhas; nesse momento, ele ficou muito bonito, estou falando de Horacio, algum dia compreenderás, Rocamadour.



Julio Cortázar


O Jogo da amarelinha
capítulo 32


para quem sabe gozar o texto



Havia, parece, uma música do Texto. Todo o esforço consiste, ao contrário, em materializar o prazer do texto, em fazer do texto um objeto de prazer como os outros. Quer dizer: seja em aproximar o texto dos “prazeres da vida” (...) e em fazê-lo entrar no catálogo de nossas sensualidades, seja em abrir para o texto a brecha da fruição, (...) identificando então esse texto com os momentos mais puros da perversão.



Roland Barthes

O prazer do texto


da extensão do sentir



E eu – como é que eu posso explicar ao senhor o poder de amor que eu ? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


da delicadeza de compartilhar o impactante




Embora Florença se estenda à minha frente de maneira tão ampla e generosa (e talvez exatamente por causa disso), ela inicialmente perturbou-me e confundiu-me de tal modo que eu mal conseguia distinguir e selecionar as minhas impressões, e acreditava estar submergindo no grande turbilhão de algo deslumbrante, para mim inédito e desconhecido. Somente agora começo a recobrar a respiração. As recordações torna-se mais claras e distinguem-se umas das outras, sinto o que ficou retido nas minhas redes e percebo que aquilo que recolhi é muito mais abundante do que eu esperava. Sei o que continua sendo minha propriedade, e quero expor peça por peça diante dos teus olhos amados, luminosos. Com toda tranqüilidade, sem te arrastar freneticamente de um lugar a outro, e sem pretender ser minucioso, haverei de mostrar-te uma coisa ou outra, dizer-te o que cada uma representa para mim, e em seguida recolherei essas coisas novamente, abrigando-as em meu repositório.



Rainer Maria Rilke

O diário de Florença



a sutileza (e o poder) das negativas



Quanta mulher não comeu o homem que quis, apenas porque ele não podia recusar uma mulher? Uma mulher se tranca com um homem num quarto e diz que ele vai comer ela. Ele tem que comer, a não ser que ela seja o Corcunda de Nôtre Dame. Ate mesmo recusar uma mulher obedece a normas, porque é estabelecido o direito de ela se ofender, se a recusa for fora das normas. Por exemplo, "você é feia, e eu não vou lhe comer", não se diz uma coisa dessas a uma mulher. Para não fazer uma inimiga mortal, o recusador tem que ser artista. Já a mulher pode recusar perfeitamente e mesmo nos piores termos - "você nunca, tá?" -, as mulheres sabem do que estou falando, sou uma feminista esclarecida-progressista, sou um grande homem-fêmea.



João Ubaldo Ribeiro

A casa dos budas ditosos


anterior às idéias



Por que escrevo isto? Não tenho idéias claras, sequer tenho idéias. Há trapos, impulsos, bloqueios. E tudo procura uma forma, então entra em jogo o ritmo e eu escrevo dentro desse ritmo, escrevo por ele, movido por ele e não pelo que chamam de pensamento e aque faz a prosa, a literatura ou outra coisa. Há primeiro uma situação confusa, que mal se pode definir pela palavra; é dessa penumbra que eu parto e, se aquilo que quero (se aquilo que quer dizer-se) tiver força suficiente o swing começa imediatamente, um oscilar rítmico que me traz para a superfície, que ilumina tudo, que conjuga essa matéria confusa e o que a castiga numa terceira instância, clara e como que fatal: a frase, o parágrafo, a página, o capítulo, o livro.



Julio Cotázar

O jogo da amarelinha
capítulo 82


inconstância



Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer…
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando…

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também… nem eu sei quando…


Flobela Espanca

Livro de 'Sóror Saudade'


da força da escolha



Mas o homem, porque não tem senão uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipóteses através de experimentos, de maneira que nunca saberá se errou ou acertou ao obedecer a um sentimento.



Milan Kundera

A insustentável leveza do ser


Se tu viesses ver-me...



Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços…

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca… o eco dos teus passos…
O teu riso de fonte… os teus abraços…
Os teus beijos… a tua mão na minha…

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…


Florbela Espanca

Charneca em Flor