elegia ao primeiro amigo



Seguramente não sou eu
Ou antes: não é o ser que sou, sem finalidade e sem história
É antes uma vontade indizível de te falar docemente
Neste momento de solidão e desmesurado perigo em que me [encontro.

[...]

Seguramente não é a minha forma:
A forma que uma tarde, na montanha, entrevi, e que me fez
[tão tristemente temer minha própria poesia.
É apenas um prenúncio do mistério
Um suspiro da morte íntima, ainda não desencantada...
Vim para ser lembrado
Para ser tocado de emoção, para chorar
Vim para ouvir o mar contigo

[...]


Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza.
Tudo me merece um olhar. Trago
No dedos um constante afago para afagar; na boca
Um constante beijo pra beijar; meu olhos
Acarinham sem ver [...]


Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente


[...] Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque em mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo. Se não fosse delicado
Já não seria mais. Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao [absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza


Seguramente não sou eu:
É a tarde, talvez assim parada
Me impedindo de pensar

[...]


Vinicius de Moraes

Cinco elegias, Antologia poética