samba-canção

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí,,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...

 Ana Cristina Cesar, A teus pés

Álbum



Ninguém na família nunca morreu de amor.
O que passou, passou, mas nada que alimente um mito.
Romeus tísicos? Julietas diftéricas?
Alguns até atingiram uma idade senil.
Nenhuma vítima de falta de reposta
a uma carta manchada de lágrimas!
Ao fim e ao cabo sempre aparecia algum vizinho
de picenê carregando um buquê.
Nunca ninguém sufocou num armário estiloso
porque o marido da amante voltou de repente!
Nenhuma mantilha babado ou fita
nunca impediu ninguém de aparecer na foto.
E nunca na alma o Bosch infernal!
E nunca com uma pistola pelo quintal!
(Faleceram de bala na cabeça, mas por outros motivos
e em macas de campanhas.)
Mesmo essa de coque extático
e olheiras fundas como depois de uma folia
se foi em meio a uma grande hemorragia
mas não para ti, dançarino, e não com pena.
Talvez alguém muito antes do daguerreótipo -
mas desses do álbum, nenhum, que eu tenha sabido.
As tristezas se desfaziam em risos, corriam os dias
e eles consolados sumiam se de gripe.


Wislawa Szymborska

Poemas

das verdades difíceis



Durante todo este tempo não escrevi nada. Não havia escrito nem estava escrevendo nada. Não havia nada dentro de mim que precisasse ser escrito. Nada precisava de qualquer palavra e não havia palavra alguma dentro de mim que não pudesse ser dita e consequentemente não havia palavra alguma dentro de mim. E eu não estava escrevendo. Comecei a me preocupar com identidade. Eu sempre fora eu porque tinha palavras dentro de mim que precisavam ser escritas e agora qualquer palavra dentro de mim poderia ser dita e não precisava ser escrita. Eu sou eu porque meu cachorrinho me conhece. Mas será que eu era eu quando eu não tinha nenhuma palavra escrita dentro de mim. Isto era muito chato. Algumas vezes pensei em tentar mas tentar é morrer e assim na verdade não tentei. Não estava escrevendo nada.


Gertrude Stein

Autobiografia de todo mundo

a escolha pelas contradições



Viver em meio a contradições é uma arte que envolve, como todas as outras, espontaneidade e astúcia de pensamento. Se for um pensamento melodramático, não levará a lugar nenhum. Para dar frutos, tem de ser uma opção deliberada, uma criação imaginativa. Mas sempre existem os que acham difícil competir com as contradições ou com uma arte que não seja continuamente simples –


Theodore Zeldin

Uma história íntima da humanidade

a ausência da sincronicidade



Todo amor tem seu instante inaugural, seu big bang particular, que é, por definição, um começo perdido, do qual os amantes, por mais perspicazes que sejam, nunca são contemporâneos. Não há amante que não seja, na verdade, herdeiro tardio de um instante de amor que nunca verá, capturado que ficou, e para sempre, no breu de sua aparição.


Alan Pauls

O passado

o olhar da perda



Quem sofre uma perda recente fica com um certo olhar que talvez seja somente reconhecível pelos que já viram aquele mesmo olhar no próprio rosto. Notei isso no meu rosto e agora percebo isso nos outros. Esse olhar reflete uma enorme vulnerabilidade, é como estar nu e desarmado. É o olhar de quem sai do consultório do oftalmologista com as pupilas dilatadas e encara a luz do dia, ou o olhar de quem usa óculos e tem subitamente que tirá-los. As pessoas que perderam alguém parecem nuas [...]


Joan Didion

O ano do pensamento mágico

Como rasurar a paisagem



a fotografia
é um tempo morto
fictício retorno à simetria

secreto desejo do poema
censura impossível
do poeta


Ana Cristina Cesar

Inéditos e dispersos