a volúpia criativa



Não: a arte não é um sofrimento, exatamente, nem é só o sofrimento que a pode legitimidade proporcionar. O momento da criação é um prazer sublime, e estou completamente em desacordo com o que o consideram um parto. Nem posso compreender mesmo, essa assimilação da criação artística com o parto. Deriva certamente da semalhança entre o filho e a obra-de-arte. O momento da criação é gostosíssimo, verdadeiramente aquela sublimidade de integração e dadivosidade do ser, em que a gente fica na ejaculação sexual. É tão sublime mesmo, é tamanha a integração, que a gente não pode se ilhar num estado de consciência e se analisar. O ser mais frágil do mundo, mais escravo, mais indefeso é o homem no momento da ejaculação: ele fica por completo inerme. Esse o momento da criação artística. O que sucede, é que esse momento é rapidíssimo (como a ejaculação), dura alguns segundos. E logo principia o trabalho mais penoso e principalmente muito mais inquieto de artefazer, corrigir, criticar, julgar, intencionalizar, dirigir a obra de arte, polir, etc., etc., sacrificar coisas que gosta em proveito de uma significação funcional da obra-de-arte, que é mais importante que a gente, o diabo. Nisso é que vem muito sofrimento, muita fadiga, muita indecisão. Mas é estranho como nesse trabalho longo, você constantemente se vê atirado na volúpia da criação, é incrível como você inventa.



Mário de Andrade

Cartas a um jovem escritor e suas respostas
carta a Fernando Sabino em 16.02.1942