da proibição



Não se pode ser infeliz, não se pode morrer em vida, não se pode desistir de de amar, de criar. Não se pode. É pecado.



Caio Fernando Abreu

Cartas
a Gerd Hilger em 03.02.94


eu



eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora

quem está por fora
não segura
um olhar que demora

de dentro de meu centro
este poema me olha


Paulo Leminsk


das dificuldades sublimes



Não se deixe enganar por sua solidão só porque há algo em você que deseja sair dela. Justamente este desejo o ajudará, caso o senhor o utilize com calma e ponderação, como um instrumento para estender sua solidão por um territóio mais vasto. As pessoas (com o auxílio das convenções) resolveram tudo da maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade; contudo é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil, tudo na natureza cresce e se defende a seu modo e se constitui em algo próprio a partir de si, procurando existir a qualquer preço e contra toda a resistência. Sabemos muito pouco, mas que temos que nos aferrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom ser solitário, pois a solidão é difícil; o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la.

Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, não podem amar: precisam aprender o amor. Mas otempo do aprendizado é um longo perído de exclusão, de modo que o amor é por muito tempo, ao longo da vida, solidão, isolamento intenso e profundo para quem ama. A princípio amor nada é do que se chama ser absorvido, entregar-se e se unir com uma outra pessoa. (Pois o que seria a união do que não é esclarecido, do inacabado, do desordenado?) O amor constitui uma opotunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de outra pessoa; é uma grande exigência para o indivíduo, uma exigência irrestrita, algo que o destaca e o convoca para longe [...] a comunhão é o passo final, talvez uma meta para a qual a vida humana quase não seja o bastante.



Rainer Maria Rilke

Cartas a um jovem poeta


das fêmeas e afazeres



Cada mulher tem acesso potencial ao Río Abajo Río, esse rio por baixo do rio. Ela chega até ele através da meditação profunda, da dança, da arte de escrever, de pintar, de rezar, de cantar, de tamborilar, da imaginação ativa ou de qualquer atividade que exija uma intensa alteração de consciência. Uma mulher chega a esse mundo-entre-mundos através de anseios e da busca de algo que ela vê apenas com o cantinho dos olhos. Ela chega até lá com artes profundamente criativas, através da solidão intencional e da prática de qualquer uma das artes. E mesmo com essas práticas bem executadas, grande parte do que ocorre neste mundo inefável permanece um mistério para nós por desrespeitar as leis da física e racionais como as conhecemos.



Clarissa Estés

Mulheres que correm com os lobos


da vida prática



não se enlouquece quando se tem um tanque cheio de roupa suja pra dar conta. Não é possível a gente se dar a esse luxo.



Caio Fernando Abreu

Cartas
a Maria Lídia Magliani em 10.09.91


dos ineditismos



Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida?



Milan Kundera

A insustentável leveza do ser


a dialética dos amantes




Piet Mondrian







- Acho que compreendo você - disse a Maga, acariciando-lhe o cabelo. - Você está procurando alguma coisa e não sabe o que é. Eu também. E também não sei o que é. Mas são duas coisas diferentes. Aquilo de que vocês falavam na outra noite... sim, você é mais um Mondrian e eu sou uma Vieira da Silva.

- Ah! - exclamou Oliveira - Então, eu sou um Mondrian.

- Sim, Horacio.

- Você quer dizer que sou um espírito cheio de rigor.

- Eu disse um Mondrian.

- E você não desconfiou que por trás desse Mondrian pode começar uma realidade Vieira da Silva?

- Oh, sim - respondeu a Maga. Mas você, até agora, não saiu da realidade Mondrian. Tem medo, quer estar seguro. Não sei de quê... Você é como um médico, não como um poeta.

- Deixemos os poetas de lado - disse Oliveira. - E não faça o pobre Mondrian ficar mal com a comparação.

- Mondrian é uma maravilha, mas não tem ar. Sua pintura me deixa um pouco oprimida. E quando você começa a dizer que seria necessário encontrar a unidade, então, eu vejo as coisas muito bonitas, mas mortas, flores dissecadas e coisas assim.

- Vamos ver, Lucía: você sabe bem o que é a unidade?

- O meu nome é Lucía, mas você não tem de me chamar assim - disse a Maga. - Claro que sei o que é a unidade. Você queria dizer que tudo na sua vida se junta para que possa ver tudo ao mesmo tempo, não é?

- Mais ou menos - concedeu Oliveira. - É incrível a dificuldade que você tem para captar noções abstratas. Unidade, pluralidade... Você não é capaz de sentir tudo sem recorrer a exemplos... Não, não é capaz. Enfim, vamos ver: a sua vida, por exemplo, será um unidade para você?

- Não, não creio. São pedaços, coisas que me foram acontecendo.



Julio Cortázar

O jogo da amarelinha
capítulo 19

da descontrução



Não posso esperar nunca que alguém me dê a liberdade. A liberdade tem que ser construída por nós mesmos. Como? Cada qual tem de descobrir por si só. Minha liberdade eu construo escrevendo, pintando, mantendo a minha visão simples do mundo, espreitando na selva como um animal, impedindo intromissões na minha vida privada. O essencial para o homem é a liberdade. Interior e exterior. Atrever-se a ser você mesmo em qualquer circunstância e lugar. A liberdade é como a felicidade: não chega nunca. Nunca se tem completa. É só um caminho. A gente caminha atrás da liberdade e da felicidade. E assim se vive. É só a isso que se pode aspirar. Faz alguns anos, e durante muito tempo, minha vida andou presa a sistemas, a conceitos, a preconceitos, a idéias pré-concebidas, a decisões alheias. Aquilo era autoritário e vertical demais. Não conseguia amadurecer assim. Vivia numa jaula, como um bebê que protegem e isolam para que jamais amadureça seus músculos e desenvolva seu cérebro. Tudo desmoronou diante de mim. Dentro de mim. Com muito estrondo. E fiquei à beira do suicídio. Ou da loucura. Tinha de mudar alguma coisa no meu interior. Do contrário podia acabar louco ou cadáver. E eu queria viver. Simplesmente viver. Sem pressões. Talvez com algum dia feliz. E reduzir as angústias. Isso é imprescindível: reduzir as angústias. Quem sabe seja só uma questão de mudar de ponto de vista. É preciso estar plenamente presente onde a gente se encontra, e não escapar sempre.



Pedro Juan Gutiérrez

Animal Tropical


esfinge



Sou filha da charneca erma e selvagem:
Os giestais, por entre os rosmaninhos,
Abrindo os olhos d' oiro, p'los caminhos,
Desta minh’alma ardente são a imagem.

E ansiosa desejo — ó vã miragem -
Que tu e eu, em beijos e carinhos,
Eu a Charneca, e tu o Sol, sozinhos,
Fôssemos um pedaço da paisagem!

E à noite, à hora doce da ansiedade,
Ouviria da boca do luar
O De Profundis triste da Saudade…

E, à tua espera, enquanto o mundo dorme,
Ficaria, olhos quietos, a cismar…
Esfinge olhando, na planície enorme…


Florbela Espanca

Livro de 'Sóror Saudade'


elogio do pecado



ela é uma mulher que goza
celestial e sublime
isso a torna perigosa
e você não pode nada contra o crime
dela ser uma mulher que goza

você pode persegui-la, ameaçá-la
tachá-la, matá-la se quiser
retalhar seu corpo, deixá-lo exposto
pra servir de exemplo.
É inútil. Ela agora pode resistir
ao mais feroz dos tempos
à ira, ao pior julgamento
repara, ela renasce e brota
nova rosa

Atravessou a história
foi queimada viva, acusada
desceu ao fundo dos infernos
e já não teme nada
retorna inteira, maior, mais larga
absolutamente poderosa.


Bruna Lombardi

O perigo do dragão


uma constatação



o amor é o fascínio recíproco de duas pessoas por aquilo que elas tem de menos dizível, de menos socializável; de refratário aos papéis e imagens delas mesmas que a sociedade lhes impõe; aos pertencimentos culturais. Nós podíamos pôr quase tudo em comum exatamente porque a princípio não tínhamos quase nada. Bastava que eu consentisse em viver o que eu estava vivendo, em amar mais que tudo seu olhar, a sua voz, o seu cheiro, seus dedos afilados, o sei jeito de habitar seu corpo, para que todo o futuro se abrisse para nós.



André Gorz

Carta a D.


da habilidade



Cantar significa usar a voz da alma. Significa sussurrar a verdade do poder e da necessidade de cada um, soprar a alma sobre aquilo que está doente ou precisando de restauração. Isso se realiza por meio de um mergulho no ponto mais profundo do amor e do sentimento, até que nosso desejo de vínculo do Self selvagem transborde, e em seguida com a expressão da nossa alma a partir desse estado de espírito. Isso é cantar para os ossos.



Clarissa Estés

Mulheres que correm com os lobos


da intimidade com a poesia



Ser poeta não é ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.



Fernando Pessoa - Alberto Caeiro

O guardador de rebanhos I


das contradições humanas



– Pode ser? – repete Oshima, agastado. – Meu jovem, pode ser que a grande maioria das pessoas existentes no mundo não esteja em busca de liberdade. As pessoas apenas pensam que estão. Tudo é ilusório. Caso a liberdade lhes fosse realmente concedida, a maioria se veria num mato sem cachorro. Lembre-se sempre disso. Na verdade, as pessoas gostam de se sentir presas, entendeu?



Hakuri Murakami

Kafka à beira mar


uma boa troca



E uma desilusão. Mas uma desilusão de quê? se, sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto, deveria se dizer assim: ele está muito feliz, porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas porque não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela possibilidade.



Clarice Lispector

A Paixão segundo G.H.


como nossos pais



Dizem que o despertar da infância se dá quando a criança não mais imagina os pais como deuses perfeitos. Os pais experimentam momentos assim com relação aos filhos também. Para eles, entretanto, a revelação é mais penosa, pois envolve um conhecimento das próprias falhas e imperfeições. Exige a aceitação de que não podemos nos redimir por meio de nossos filhos e nem poderemos salvá-los de seguirem seus próprios desígnios.



Prya Basil

Ishq & Mushq – Amor & Cheiro


sobre a fé



[...]

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele.
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
com o modo de falar que reparar para elas ensina)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E sol e luar e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe
(Que sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e àrvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda hora.


Fernando Pessoa - Alberto Caeiro

O guardador de rebanhos V


na realidade



uma das coisas que aprendi na minha vida é que deve viver apesar de. Apesar de, se deve morrer. Inclusive, muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi criadora de minha própria vida.



Clarice Lispector

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres