sobre alma irmã da minha



E não é verdade que o reconhecimento da liberdade de outrem limite minha própria liberdade: ser livre não é ter o poder de fazer qualquer coisa; é poder superar o dado rumo a um futuro aberto; a existência de outrem enquanto liberdade define minha situação e ela é até a condição de minha própria liberdade.



Simone de Beavoir

Por uma moral da ambigüidade


poema óbvio



Não sou idêntica a mim mesmo
sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob
[o mesmo ponto de vista
Não sou divina, não tenho causa
Não tenho razão de ser nem finalidade própria:
Sou a própria lógica circundante

Ana Cristina Cesar


Inéditos e dispersos


dos signos que não salvam



Para dispor as cartas, as mãos do jovem ora procedem por oscilações ou movimentos bruscos nas seqüências, ora se contorcem, como que "chorando" cada carta já jogada que mais valia para outro jogo, ora se deixam ir em gestos de mole indiferença como a significar que tanto a carta quanto o poço são iguais como as copas que se repetem idênticas no jogo, como no mundo das coisas uniformes os objetos e os destinos que se escancaram diante de nós, intercambiáveis e imutáveis, e quem pensa que decide não passa de um iludido.
Como explicar que para a sede que tem no corpo não lhe basta nem um poço nem outro?



Italo Calvino

O castelo dos destinos cruzados


do tempo presente



Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro.



Clarice Lispector

Um sopro de vida - Pulsações


I



Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, sem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez
E mais atento.


Hilda Hilst

Júbilo, memória, noviciado da paixão


da dessacralização do escrito



Sabemos agora que o texto não é feito um linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a mensagem de um Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, ds quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura.



Roland Barthes

A morte do autor
em O rumor da língua


porque o segredo é a mistura



eu careço que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro lado o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio em si; mas transtraz a esperança mesmo no meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


da resiliência



eu amo a vida, eis a minha verdadeira fraqueza. Amo-a tanto, que não tenho nenhuma imaginação para o que não for vida. Tal avidez tem algo de plebeu, naõ acha? a aristocracia não se concebe sem um pouco de distância em relação a si mesma e à própria vida. Morre-se se for preciso, antes quebrar que dobrar. Mas, eu, eu me dobro, porque continuo a me amar.



Albert Camus

A queda


das perspectivas particulares



Com efeito, por todo o lado se via sujeira e embriaguez, estupidez e desonestidade, mas apesar disso eu sentia que a vida do mujique em geral se assentava sobre uma base forte e sã. Por mais que os camponeses atrás do seu arado me parecessem animais desajeitados, e por mais que se embebedassem com vodca, quando os olhada de perto sentia que existia neles qualquer coisa de necessário e muito importante, que não existia, por exemplo em Macha e no doutor Blagov. Acima de tudo, eram pessoas que que acreditavam que o mais importante na terra era a verdade, e que sua salvação e a de todos estava unicamente na verdade, e por isso o que mais apreciavam na vida era a justiça. Eu dizia a minha mulher que ela via as manchas no cristal, mas não via o próprio cristal. Como resposta ela calava-se ou punha-se a cantarolar [...]

Quando essa mulher boa, inteligente, empalidecia de indignação, e com a voz trêmula conversava com o médico sobre bebedeiras e desonestidades, eu me impressionava e ficava perplexo com sua capacidade de esquecer. Como podia esquecer que seu próprio pai, o engenheiro, também bebia, bebia muito, e que o dinheiro com o qual Dubetchnia tinha sido comprada, ele o conseguira através de uma série de logros imorais e cínicos? Como podia esquecer tudo isso?



Anton Tchekov

Minha vida


da criança dentro de cada um



Da janela eu vejo os garotos no pátio do colégio, durante o recreio. Sempre me dá uma certa saudade, porque eu já fui menino. Aliás, embora pareça incrível, até mesmo pessoas como Jânio Quadros e Dom Hélder Câmara ou mesmo a verenanda Tia Zulmira já foram crianças. O importante não deixar nunca que o menino morra completamente dentro da gente, quando a gente fica adulta. Pobre daquele que abdicar completamente dos gosto infantis. Ficará velho mais depressa. O menino que a pessoa conserva dentro de si é um obstáculo no caminho da velhice.Dizem que é por isso que os chineses - de incontestável sabedoria - conservam o hábito de soltar papagaio (ou pipa, se preferirem) mesmo depois de homens feitos. Não sei se é verdade. Nunca fui chinês.



Stanislaw Ponte Preta

Gol de padre, em Rosamundo e os outros


da arte do encontro



uma boa conversa é estimulante e irresistível, não é só transmitir informações ou compartilhar emoções, tampouco apenas um modo de incutir idéias na cabeça de outras pessoas. Toda conversa é um encontro de dois espíritos que possuem lembranças e hábitos diversos. Quando espíritos se encontram, não se limitam a trocar fatos: eles os transformam, dão lhes nova forma, tiram deles implicações diferentes, empreendem um novo encadeamento de pensamentos. "Conversar não é apenas reembaralhar as cartas: é criar novas cartas para o baralho. O aspecto da prática da conversa que mais me estimula é o fato de poder mudar os sentimentos, as idéias e a maneira como vemos o mundo, além de poder mudar até mesmo o próprio mundo."

Regina Navarro Lins


A cama na varanda
citando Theodore Zeldin


diferentes artes e seus públicos



Esta educação artística errada distorceu todos os conceitos: espera-se que de repente o artista se torne uma espécie de tio que apresenta um divertimento dominical que apresenta aos seus sobrinhos e às suas sobrinhas (ao distinto público): sua obra. Ele pinta um quadro ou cria uma estátua com seu cinzel. Para quê? Meu Deus: para agradar a fulano e sicrano nos quais não está nem um pouco interessado, para estimular a sua digestão preguiçosa por meio desta boa idéia, e para decorar suas salas com a obra condescendente.

É assim que o público quer o artista; decorre daí este medo filisteu de tudo o que a arte pode apresentar de desagradável, de triste ou trágico, de nostálgico e ilimitado, de terrível e ameçador – aspectos que já existem em quantidade suficiente na nossa vida. Eis a razão da preferência pela alegria inocente, pelo lúdico, inofensivo, insípido, picante – pela arte, em suma, de filisteus para filisteus, que se possa usufruir como uma sesta ou uma pitada de tabaco.



Rainer Maria Rilke

O diário de Florença


sobre o execício d' escritura



Tudo isto é como um sonho que a palavra traz em si e que passando através daquele que escreve liberta a si mesma e a ele também. Na escrita o que fala é o reprimido.



Italo Calvino

O castelo dos destinos cruzados


sobre mãos muito leves



Como terei orgulho do ridículo de passar bilhetes pela porta.
Esta mesma porta hoje fecho com cuidado; altivo.
Como não repetirei, a teus pés, que o profissional esconde no
índice onomástico os ladrões de quem roubei versos de amor
com que te cerco.
Te cerco tanto que é impossível fazer blitz e flagrar a
ladroagem.


Ana Cristina Cesar

Inéditos e dispersos

ps. o título da postagem não corresponde ao título do poema.


os domínios do selvagem



La Loba, a Velha, Aquela que Sabe, está dentro de nós. Ela viceja na mais profunda alma-psique da mulheres, antiga e vital da Mulher Selvagem. [...] Essa velha está entre os universos da racionalidade e do mito. Esse espaço entre os mundos é aquele lugar inexplicável que todas reconhecemos uma vez quando passamos por ele, porém suas nuances se esvaem e têm a forma alterada se quisermos defini-las, a não ser quando recorremos à poesia, à música, à dança... ou às histórias.



Clarissa Estés

Mulheres que correm com os lobos


das ocupações de cada um



Minha alegria é áspera e eficaz, e não se compraz em si mesma, é revolucionária. Todas as pessoas poderiam ter essa alegria, mas estão ocupadas demais em ser cordeiros de deuses.



Clarice Lispector

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres


passeio ao campo



Meu amor! Meu amante! Meu amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!

Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina…
Pele doirada de alabastro antigo…
Frágeis mãos de madona florentina…
- Vamos correr e rir por entre o trigo! -

Há rendas de gramíneas pelos montes…
Papoilas rubras nos trigais maduros…
Água azulada a cintilar nas fontes…

E à volta, Amor… tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras…


Florbela Espanca

Charneca em flor


sobre a ilusão da autoria



lingüisticamente, o autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como "eu" outra coisa não é senão aquele que diz "eu": a linguagem conhece um "sujeito", não uma "pessoa", e esse sujeito, vazio fora da enunciação que o define, basta para "sustentar" a linguagem, isto é, para exauri-la.



Roland Barthes

A morte do autor
em O rumor da língua


da busca do homem por um éden



o homo sapiens não procura a porta para entrar no reino milenar (embora isso não fosse nada mau, na realidade), mas apenas para fechá-la atrás de si e balançar o rabo como um cachorro contente, sabendo que o sapato da porra dessa vida ficou para trás, arrebentando-se contra a porta fechada, e que o pobr olho do cu poderá, então, começar a repousar, que ele, sim, ele o homo sapiens poderá endireitar-se e caminhar entre as flores do jardim e sentar-se para olhar para um nuvem durante apenas cinco mil anos, ou vinte mil se for possível, e se ninguém o vier incomodar e se houver a possibilidade de ficar no jardim, olhando as pequenas flores.



Julio Cortázar

O jogo da amarelinha
capítulo 71