Como rasurar a paisagem



a fotografia
é um tempo morto
fictício retorno à simetria

secreto desejo do poema
censura impossível
do poeta


Ana Cristina Cesar

Inéditos e dispersos

sobre os que morrem em vida



quando digo “um homem mau de verdade”, quero dizer que é uma homem que renegou tanto tudo o que poderia haver de bom dentro dele, que parecia uma cadáver, quando, porém, ainda estava vivo. Porque os maus de verdade detestam o mundo inteiro, sem dúvida. Vocês não sentem quando uma pessoa tem raiva de si mesmo? Isso leva a pessoa a se tornar morta embora esteja viva, a anestesiar os maus sentimentos mas também os bons para não sentir a náusea de ser ela mesma.


Muriel Barbery

A elegância do Ouriço
pensamento profundo nº 6

de amores, amizades, narcisismos



A amizade entre os sexos ultrapassa a absorção romântica no momento efêmero, esquecendo todo o resto, sonhando somente com a paixão. Se a paixão for a única realidade, a vida não pode ter outro significado, e todo sabem que a paixão fenece. É cada vez maior o número de indivíduos difíceis de se contentar e que não encontram um parceiros à sua feição, consumindo-se na busca de algo mais que a admiração mútua de um casal em circuito fechado. Tentando satisfazer ambições aparentemente irreconciliáveis, eles precisam de relacionamentos que não sejam tão rígidos quanto um rigor mortis.


Theodore Zeldin

Uma história íntima da humanidade

da duplicidade



El poema que no digo,
el que no merezco.
Miedo de ser dos
camino del espejo:
alguien en mi dormido
me come y me bebe


Alejandra Pizarnick

Arból de Diana
poema 14

os burgueses e seus jardins



Um rapaz se apaixona por uma moça; passa ao lado dela todas as horas do seu dia; consome todas as suas forças, todos os bens que possui, para provar-lhe, a cada momento, que se entrega a ela sem reservas. Surge, então, um pretensioso, alguém com um bom cargo público e lhe diz: “Meu jovem senhor: amar é próprio da natureza humana, mas é necessário amar como um homem. Divida suas horas: consagre umas ao trabalho, e o tempo livre a sua amada. Faça o balanço de seus bens e, após ter atendido a todas as suas necessidades, não censuro se usar o excedente para presentear sua amada, mas não exagerando; por exemplo, no dia de seu aniversário, de seu santo protetor...”

Se o nosso apaixonado lhe der ouvidos, tornar-se-á um jovem muito útil, e eu próprio não vacilaria em aconselhar a algum príncipe a lhe dar um emprego; mas seu amor está liquidado, assim como sua arte, se for um artista. Oh, meus amigos, porque transborda tão raramente a torrente do gênio? Por que razão tão raramente ela se agita em grandes ondas e faz estremecer almas admiradas?... Caros amigos, é porque nas duas margens habitam tranqüilos burgueses, cujos canteiros de tulipas e plantações e plantações de hortaliças seriam devastados pela torrente caso não soubessem, com diques e canais, evitar inteligentemente o perigo que os ameaça.



J.W. Goethe

Os sofrimentos do Jovem Werther

uma simultaneidade difícil



Sou a última pessoa autorizada a andar dizendo o que eu sinto e o que eu não sinto. Saber e sentir são coisas diferentes. Quando se sente, não se sabe, e quando se sabe, e quando você acredita que sabe, já deixou de sentir. Ou se sente outra coisa, o que dá no mesmo, porque na verdade você continua sem tomar conhecimento.

Xavier Velasco

Diabo Guardião


do cinismo



Explico-me: não há ninguém mais sonhador que o cínico. É porque ainda acredita, do fundo da alma, que o mundo tem um sentido e porque não consegue abrir mão das baboseiras da infância que ele adota uma atitude contrária. “A vida é uma bandida, não creio em mais nada, e dela gozarei até a náusea” são as palavras perfeitas de um ingênuo contrariado.


Muriel Barbery

A elegância do Ouriço
pensamento profundo nº3


as leituras de Lotte



O autor que prefiro é aquele no qual se encontra o mundo em que vivo, em cujos livros as coisas se passam como em volta de mim, e cuja narração me prende e me interessa tanto quanto minha vida doméstica que, se não é nenhum paraíso, representa para mim uma fonte inexprimível de felicidade.



J.W. Goethe

Os sofrimentos do Jovem Werther


das utilidades sutis



Era ser cada dia um trapaceiro cheio de artifícios e às vezes até um assassino sem cadáver nem corpo do delito, cujos únicos vestígios resultavam em apenas algo menos do que ilegíveis – páginas e páginas de uma caligrafia tão falsamente recatada que se esforçava em não dizer o que dizia. Escrever para ninguém e para nada: foi assim que aprendeu a tornar-se invisível.




Xavier Velasco

Diabo Guardião



Joanna Newsom






Easy




Easy, easy
My man and me
We could rest and remain here, easily

We are tested and pained by
What's beyond our bed
We are blessed and sustained
By what is not said

No-one knows what is coming
Or who will harvest what we have sewn
Or how I’ve been dulling and dumbing
In the service of the heart alone

Or how I am worn to the bone
By the river
And in the river made of light
I'm your little life-giver
I will give my life

Haven't you seen what I’ve seen
Don't you know what you ought to do
I was born to love
And I intend to love you

Down in the valley
Where the fields are green,
Watch my luck turn, fro and to pluck
Every last daisy clean
Till only I may love you

I am easy
Easy to keep
Honey, you please me
Even in your sleep
But my arms want to carry
My heart wants to hold
Tell me your worries
I want to be told

Sit and see how the fog
From the port in the bay
Lays like snow
At the foot of the Roanoke

Hear the frog going courting
Till the day he croaks
Saying even then
How there is light in the river
And there’s a river made of light
Come on you little life-giver
Give your life

Who asked you
Who asked you
If you want to be loved by me
Who died and made you in charge
Of who loves who
All the livelong day
If I have my way, I will love you

But One can't carry the weight
Or change the fate of Two
I've been waiting for a break
How long's it gonna take
Let me love you

How about it
How about what I have to say
How about that livelong day
How am I gonna stay
Here without you

Easy, easy
You must not fear
You must meet me, to see me
I am barely here
But, like a Bloody Mary
Seen in the mirror
Speak my name
And I appear
Speak my name
And I appear
Speak
And I appear


porque o que canta o que a gente sente e o que gente ouve enquanto escreve também é influência

do desperdício



gastamos parte não desprezível de nossa energia a intimidar ou seduzir, já que essas duas garantem, sozinhas, a busca territorial, hierárquica e sexual que anima nosso contato. Mas nada disso chega a nossa consciência. Falamos de amor, de bem e de mal, de filosofia e civilização, e nos agarramos a esses ícones respeitáveis como o carrapato sedento a seu cão bem quentinho.

Às vezes, porém, a vida nos parece uma comédia fantasma.


Muriel Barbery

A elegância do ouriço


o que se há de buscar



Em cada vida há um elemento de vitória contra o medo que precisa ser buscado, ainda que possa resultar em uma falsa vitória. Muitas vezes, pessoas aparentemente inteligentes destilam desprezo para se protegerem daquilo que não podem entender, como animais defende seus territórios com cheiros repugnantes. A liberdade conquistada é regularmente perdida. Ou então as pessoas vão se tornando tão tolerantes que não sabem para onde vão.



Theodore Zeldin

Uma história íntima da humanidade


a prece de Violetta



Ave Maria Puríssima: eu me acuso de ser eu mesma, em tudo o quano é lugar. Isto é, de querer sempre ser outra. E ainda pior do que isso: de consegui-lo, ah, sim! Eu me acuso de bitchear, de witchear e de bancar a ordinária, de ser barata que nem vinho em caixinha, e ao mesmo tempo também cara, como qualquer piranha traiçoeira.

Xavier Velasco

em Diabo Guardião


do que não se pode implodir



O Surrealismo, finalmente, para nos atermos a essa pré-história da modernidade, não podia, sem dúvida, atribuir à linguagem um lugar soberano, na medida em que a linguagem é sistema, e aquilo que se tinha em mira nesse movimento era, romanticamente, uma subversão direta dos códigos - aliás ilusória, pois um código não pode se destruir, pode-se apenas jogar com ele



Roland Barthes

A morte do autor
em O rumor da língua


do íntimo que extravasa



E quando o amor é recompensado, ainda que momentaneamente, por aquela sensação ainda mais arisca, que é a autoconfiança, transforma-se não somente num segredo privado, mas numa força pública.



Theodore Zeldin

Uma história íntima da Humanidade