dos questionamentos



A palavra escrita apascenta paixões? Ou submete as forças da natureza? Ou se encontra em harmonia com a desumanidade do universo? Ou gera uma violência contida mas sempre pronta a arremessar-se, a dilacerar?



Italo Calvino

O castelo dos destinos cruzados


alta tensão



eu gosto dos venenos mais lentos
dos cafés mais amargos
das bebidas mais fortes
e tenho
apetites vorazes
uns rapazes
que vejo passar
eu sonho
os delírios mais soltos
e os gestos mais loucos
que há
e sinto
uns desejos vulgares
navegar por uns mares
de lá
você pode me empurrar pro precipício
não me importo com isso
eu adoro voar.


Bruna Lombardi

O perigo do dragão


bichinho danado



Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Carlos Drummond de Andrade

ps. o título da postagem não é o do poema.


como deve falar uma mulher



Dizem que a mulher deve ser uma ajudante do marido. Para que eu preciso de ajudante? Posso bem ajudar a mim próprio. A mulher deve falar com o marido, mas sem blablablá, devem ser conversas inteligentes e sensíveis. O que é a vida sem uma boa conversa?



Anton Tchekov

Minha vida


para evitar a perdição



Nós, os que escrevemos, temos na palavra humana, escrita ou falada, grande mistério que não quero desvendar com meu raciocínio que é frio. Tenho que não indagar do mistério para não trair o milagre. Quem escreve ou pinta ou ensina ou dança ou faz cálculos em termos de matemática, faz milagre todos os dias. É uma grande aventura e exige muita coragem e devoção e muita humildade em viver. Mas ao escrever sou fatalmente humilde. Embora com limites. Pois no dia em que eu perder dentro de mim a minha própria importância – tudo estará perdido.



Clarice Lispector

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres


do desapego



a brandura de botar pra se esquecer uma porção de coisas – as bestas coisas em que a gente no fazer e no pensar vive preso, só por precisão, mas sem fidalguia.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


Macunaíma e a metrópole



A inteligência do herói estava muito perturbada. Acordou com os berros da bicharia lá em baixo nas ruas, disparando entre as malocas temíveis. E o diacho daquele sagüi-açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho em que dormira... Que mundo de bichos! que despropósito de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos nas sovacas nas cordas dos morros furados por grotões donde gentama saía muito branquinha branquíssima, decerto a filharada da mandioca!... A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhãs rindo tinham ensinado a ele que o sagüi-açu não era sagüim não, chamava elevador e era uma máquina.

De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças-pardas não eram onças-pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas.Os tamanduás os boitatás as inajás de caruatás de fumo em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés... Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel escutando assuntando maquinando numa cisma assombrada. Tomou um respeito cheio de inveja por essa deusa deveras forçuda, Tupã famanado que os filhos da mandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira que a Mãe-d'Água, em bulhas de sarapantar.

Então o herói resolveu ir brincar com a Máquina pra ser também imperador dos filhos da mandioca.



Mario de Andrade

Macunaíma


entre o escrito e o vivido



A escrita tem em suma um subsolo que pertente á espécie, ou pelo menos à civilização, ou pelo menos a certas categorias de renda. E eu? E esse tanto ou quanto de particularmente pessoal que pensava aí meter? Se posso evocar a sombra de um autor para acompanhar meus passos hesitantes nos territórios do destino individual, do eu, do (como agora chamam) "vivido", esta há de ser a do Egoísta de Grenoble, do provinciano à conquista do mundo, que antigamente lia como se esperasse dele a história que eu devia escrever (ou viver: havia uma confusão entre os dois verbos, nele, ou no eu de então.



Italo Cavino

O castelo dos destinos cruzados

das tentações



Mas o mais valoroso dos seres humanos tem medo de si mesmo. A mutilação do selvagem subsiste tragicamente na renúncia que nos estraga a vida. Somos punidos pelo que enjeitamos. Todo impulso que nos empenhamos em sufocar no encuba o espírito e nos envenena. Peque o corpo uma vez, e estará livre do pecado, porque a ação tem um dom purificador. Nada restará então, salvo a lembrança de um prazer; ou a volúpia de um arrependimento. A única maneira de se livrar de uma tentação é ceder-lhe.



Oscar Wilde

O retrato de Dorian Grey


memória



Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.


Carlos Drummond de Andrade