minha culpa



Sei lá! Sei lá! Eu Sei lá bem
Quem sou? Um fogo-fatuo, uma miragem…
Sou um reflexo… um canto de paisagem
Ou apenas cenário! Um vaivém

Como a sorte: hoje aqui, depois além!
Sei lá quem sou? Sei lá! Sou a roupagem
De um doido que partiu numa romagem
E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!...

Sou um verme que um dia quis ser astro..
Uma estatua truncada de alabastro...
Uma chaga sangrenta do Senhor...

Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,
Num mundo de maldades e pecados,
Sou mais um mau, sou mais um pecador...


Florbela Espanca

Charneca em flor


aos olhos



O verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível...



Oscar Wilde

O retrato de Dorian Gray


Ante-sonho



O súbito preamar
amor prelúdio
anuncia.

Inesperadas estrelas
silhuetas
que se unem
ajuntam.

Céus sem vácuo
Véus caindo
ainda findam.


Ana Cristina Cesar

Inéditos e dispersos


o herói e as máquinas II



Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando as brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a máquina. A Máquina era que matava os os homens, porém os homens que mandavam na Máquina... Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da da máquina sem sem mistério sem querer sem fastio, incapaz de de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço de um arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu:

- Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta. Há empate.

Não concluiu mais nada porque inda nã estava acostumado com discursos porém palpitava pra ele muito embrulhadamente muito! que a máquina devia de ser um deus de quem os homens não eram verdadeiramente donos só porque não tinham feito dela uma Iara explicável mas apenas uma realidade do mundo.



Mário de Andrade

Macunaíma


o herói e as máquinas



as três cunhãs deram muitas risadas e falaram que isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha deus e que com máquina ninguém brinca não porque ela mata. A máquina não era deus não, nem possuia os distintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com fumo, os homens aproveitando as forças da natureza. Porém jacaré acreditou? nem o herói! Se levantou na cama e com um gesto, esse sim! bem guaçu de desdém, tó! batendo o antebraço esquerdo dentro do outro dobrado, mexeu com força a munheca direita e pras três cunhãs e partiu. Nesse instante, falam, ele inventou o gesto famanado de ofensa: a pacova.



Mário de Andrade

Macunaíma


motivo



Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.


Cecília Meireles

Obras Completas


das matérias primas



não é mesmo com bons sentimentos que se faz literatura: a vida também não. Mas há algo que não é bom sentimento. É uma delicadeza de vida que inclusive exige a maior coragem para aceitá-la.



Clarice Lispector

Uma apredizagem ou O livro dos prazeres


sobre os capazes de dizer



Quando as ditaduras forem reduzidas a zero, a sociedade humana precisará de verdades, e justamente verdades impopulares. Essas verdades que se relacionam com razões não reconhecidas do atual caos social prevalecerão finalmente, quer queria ou não o povo. Uma dessas verdades é que a ditadura tem suas raízes no medo irracional das massas à vida. Aquele que expõe essas verdades se arrisca muito – mas pode esperar. Não se sente forçado a lutar pelo poder para revelar sua verdade. Seu poder reside no seu conhecimento dos fatos que, em geral, pertencem ao gênero humano. Não importam quão desagradáveis possam ser esses fatos; em tempos de exigência social extrema o desejo de viver da sociedade força-la-á a reconhecê-los, apesar de tudo o mais.



Wilhelm Reich

A função do orgasmo


da verdadeira educação



Bem, de fato ela [a literatura] nos educa sobre a vida. Não seria a pessoa que sou, não compreenderia o que compreendo se não fossem alguns livros. Estou pensando na grande questão russa do século XIX: como se deveria viver? Um romance que merece ser lido é um aprendizado do coração. Alarga o sentido das possibilidades humanas, do que é a natureza humana, do que acontece no mundo. É um criador de vida interior.



Susan Sontag em entrevista a The Paris Review

Escritoras e a arte da escrita


a raposa



– Minha vida é monótona. Eu caço galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens também. Mas se tu me cativas, minha vida será como cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar para debaixo da terra. Os teus me chamarão para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês lá longe, os campos de trigo? Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos dourados. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará com que eu me lembre de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...

(...)

– A gente só conhece bem as coisas que cativou – disse a raposa. – O homens não tem mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo já pronto nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não tem mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!

– Que é preciso fazer? – perguntou o pequeno príncipe.

– É preciso ser paciente – respondeu a raposa. – Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas a cada dia, te sentarás um pouco mais perto...

No dia seguinte o príncipe voltou.

– Teria sido melhor se voltasses à mesma hora – disse a raposa. – Se vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde às três começarei a ser feliz! Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade!



Antoine de Saint-Exupéry

O pequeno príncipe


do encontro



– Comigo você falará sua alma toda, mesmo em silêncio. Eu falarei minha alma toda, e nós não nos esgotaremos porque a alma é infinita. E além disso, temos dois corpos que nos será um prazer alegre, mudo, profundo.


Clarice Lispector

Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres


poética



Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


Manuel Bandeira


elegia ao primeiro amigo



Seguramente não sou eu
Ou antes: não é o ser que sou, sem finalidade e sem história
É antes uma vontade indizível de te falar docemente
Neste momento de solidão e desmesurado perigo em que me [encontro.

[...]

Seguramente não é a minha forma:
A forma que uma tarde, na montanha, entrevi, e que me fez
[tão tristemente temer minha própria poesia.
É apenas um prenúncio do mistério
Um suspiro da morte íntima, ainda não desencantada...
Vim para ser lembrado
Para ser tocado de emoção, para chorar
Vim para ouvir o mar contigo

[...]


Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza.
Tudo me merece um olhar. Trago
No dedos um constante afago para afagar; na boca
Um constante beijo pra beijar; meu olhos
Acarinham sem ver [...]


Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente


[...] Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque em mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo. Se não fosse delicado
Já não seria mais. Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao [absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza


Seguramente não sou eu:
É a tarde, talvez assim parada
Me impedindo de pensar

[...]


Vinicius de Moraes

Cinco elegias, Antologia poética