da conjugação diária e necessária



A liberdade é a fonte de que surgem todas as significações e todos os valores; ela é a condição original de toda justificação da existência; o homem que busca justificar sua vida deve querer antes de tudo e absolutamente a própria liberdade: ao mesmo tempo que ela exige a realização de fins concretos, de projetos singulares, ela se exige universalmente. Ela não é um valor inteiramente construído que se proporia de fora a minha adesão abstrata, mas a aparece (...) como causa em si: ela é convocada necessariamente pelos valores que afirma e através dos quais se afirma; ela não pode fundar uma recusa de si mesma, pois ao recusar-se recusaria a possibilidade de qualquer fundamento.



Simone de Beauvoir

Por uma moral da ambigüidade


Poesia



Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.


Carlos Drummond de Andrade


dos venenos e seus remédios



Nada pode curar a alma, senão os sentidos: como não há, para curar os sentidos, nada como a alma.



Oscar Wilde

O retrato de Dorian Grey


da coragem que liberta



Hoje, sei: medo meditado, foi isto. Medo de errar. Sempre tive. Medo de errar é que a minha paciência. Mal. O senhor fia? Pudesse tirar de si esse medo de errar, a gente estava salva.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


ou é ou não é



Onde me conhecem honras me dão, onde não me conhecem me darão ou não!



Mário de Andrade

Macunaíma


uma questão de ponto de vista



a matéria do escrever não estará toda por acaso nesse resurgir à superfície de grifos peludos, assanhamentos caninos, chifradas caprinas, violências interditas que bacejam nas trevas? Mas a coisa pode ser vista de duas maneiras: que este fervilhar demoníaco no interior das pessoas singulares e plurais, nas coisas feitas ou que se acredita fazer, e nas palavras ditas e que se acredita dizer, seja um modo de fazer ou de dizer que algo não está bem e convém, portanto, engolir tudo de novo, ou em vez disso seja precisamente o que mais conta e visto que ali está seja aconselhável fazê-lo vir a furo; dois modos de ver a coisa que se podem depois misturar de várias maneiras, porque pode ser que o negativo, por exemplo, seja negativo mas necessário porque sem ele o positivo não seria positivo, ou ainda que não seja de fato negativo e que o único fato de negativo seja aquele que se toma por positivo.



Italo Calvino

O castelo dos destinos cruzados


sobre o batismo de sangue necessário



-Talvez esteja me faltando alguma coisa. Alguma coisa que necessariamente se deve ter para ser um romancista.

Seguiu-se um longo silêncio. Parecia que estava pedindo a minha humilde opinião.

Depois de algum tempo, comecei a falar.

- Muito tempo atrás, na China havia cidades circundadas por muros altos, com portões enormes, suntuosos. Os portões não eram apenas portas que permitiam a entrada e saída de pessoas. Eles tinham uma grande importância. As pessoas acreditavam que a alma da cidade residia nos portões. Ou que, pelo menos deveria ali residir. Como na Europa, na Idade Média, quando as pessoas achavam que o coração da cidade ficava em sua catedral e na praça central. Por isso, até hoje, na China, há uma porção de portões maravilhosos ainda de pé. Sabe como construiram esses portões?

- Não faço a menor idéia - respondeu Sumire.

- As pessoas levavam carretas aos campos e coletavam ossos descorados que haviam sido enterrados ou que se espalhavam por ali. A China é uma bonita região, um monte de antigos campos de batalha, por isso nunca precisaram buscar muito longe. Na entrada da cidade, construíram um portão imenso e o vedadam com os ossos dentro. Esperavam que, homenageando-os dessa maneira, os soldados mortos continuariam a proteger a sua cidade. E tem mais. Quando o portão era concluído, levavam vários cachorros, cortavam suas gargantas e borrifavam o portão com seu sangue. Somente misturando sangue fresco com ossos exangues, a alma antiga dos mortos reviveria magicamente. Pelo menos essa era a idéia.

Sumire esperou em silêncio que eu prosseguisse.

- Escrever romances é a mesma coisa. Juntam-se os ossos, faz-se o portão, porém não importa o quão maravilhoso se torne, só isso não torna o romance vivo, que respira. Uma história não é algo deste mundo. Uma verdadeira história requer uma espécie de batismo mágico para ligar o mundo deste lado ao mundo do outro lado.

- O que está dizendo é que eu preciso partir sozinha e encontrar meu próprio cachorro?

Concordei com um movimento de cabeça.

- E derramar sangue fresco?

Sumire mordeu o lábio e refletiu. Lançou outra pedra impotente no lago.

- Eu realmente não quero matar um animal, se puder evitá-lo.

- É uma metáfora - disse eu. - Não precisa matar de verdade coisa nenhuma.



Haruki Murakami

Minha querida Sputnik


do peso que não nos pertence



Não existe nada mais pesado que a compaixão. Mesmo nossa própria dor não é tão pesada como a dor co-sentida com outro, pelo outro, no lugar do outro, multiplicada pela imaginação, prolongada em centenas de ecos.



Milan Kundera

A insustentável leveza do ser

Estou atrás



do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra


Ana Cristina Cesar

Inéditos e dispersos


dos reconhecimentos



parem
eu confesso
sou poeta

cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face

parem
eu confesso
sou poeta

só meu amor é meu deus

eu sou o seu profeta


Paulo Leminski

ps. o título da postagem não é o do poema


das coisas inordenáveis



O verbo ler não suporta o imperativo. Aversão que partilha com alguns outros: o verbo "amar" ... o verbo "sonhar" ... Bem, é sempre possível tentar, é claro. Vamos lá: "Me ame!" "Sonhe!" "Leia!" "Leia logo, que diabo, estou mandando você ler!"

- Vá para o seu quarto e lei!
Resultado?
Nulo.
Ele dormiu em cima do livro.



Daniel Pennac

Como um romance


da carta de Maga a seu filho II



Há uma coisa que se chama tempo, Rocamadour, é como um bicho que anda e anda. Não posso explicar porque ainda és muito pequeno, mas quero dizer que Horacio vai chegar daqui há pouco. Achas que devo deixar ele ler esta carta, para que também te escreva qualquer coisa? Não, eu não desejaria que outra pessoa lesse uma carta que fosse somente para mim. Um grande segredo entre nós Rocamadour. Já não choro mais, estou contente, mas é tão difícil entender as coisas, preciso tanto tempo para entender um pouco daquilo que Horacio e os outros compreendem tão depressa; mas eles, que tudo compreendem tão bem, nãopodem compreender nem a ti, nem a mim, não compreendem que não posso te ter comigo, te dar de comer, e trocar tuas fraldas, te fazer dormir ou brincar, não compreendem e, na realidade, pouco se importam. Só eu que tanto me importo, sei que não posso te ter comigo, sei que isso é muito ruim para nó dois, sei que preciso estar sozinha com Horacio, quem sabe até quando, ajudando-o a procurar o que ele procura e que tu também procurarás, Rocamadour, porque serás um homem e também procurarás como um grande tolo.



Julio Cortázar

O jogo da amarelinha
capítulo 32


da importância da poesia



Faço poesia não porque seja poeta mas para exercitar minha alma, é o exercício mais profundo do homem.



Clarice Lispector

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres


nestes dias de verão



Sinto, por assim dizer, o ritmo de uma respiração mais profunda, em comparação com o qual meu respirar não passa de um saltitar infantil, e nesta fortaleza tenho a estranha sensação de liberdade e de medo, semelhante à de uma criança que carrega sobre os ombros a ar madura de um ancestral e que, ao lado da alegria que lhe infunde o brilho da sua investidura, já sente o peso doloroso da couraça que, em breve, a despojará de seu orgulho infantil e a obrigará a dobrar os joelhos trêmulos.



Rainer Maria Rilke

O diário de Florença


se não houver um deus



Mas se o homem é livre para definir ele próprio as condições de uma vida válida a seus próprios olhos, ele não pode escolher qualquer coisa, e agir de qualquer modo? Dostoievski afirmava: "Se Deus não existe, tudo é permitido". [...] Entretanto, estamos longe de que a ausência de Deus autorize toda licença; é, ao contrário, porque o homem está desamparado sobre a terra que seus atos são engajamentos definitivos, absolutos, ele carrega a responsabilidade de um mundo que não é a obra de uma potência estrangeira, mas dele mesmo, e no qual se inscrevem tanto suas derrotas quanto suas vitórias. Um Deus pode perdoar, apagar, compensar; mas se deus não existe, as faltas do homem são inexpiáveis.



Simone de Beauvoir

Por uma moral da ambigüidade


não há vagas



O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço


o poema, senhores,
não fede
nem cheira



Ferreira Gullar

Dentro da noite veloz