dos registros importantes



– Todos nós perdemos coisas preciosas ao longo da vida – diz ele quando o telefone enfim pára de tocar. – Oportunidades ou possibilidades importantes, emoções que nunca mais experimentamos. Esse é um dos significados da vida. Mas dentro de nossas mentes – eu ao menos acho que é dentro das nossas mentes – existe um pequeno aposento destinado a guardar tais preciosidades na forma de lembranças. Deve ser um aposento semelhante àquele em que guardamos o acervo desta biblioteca. E para sabermos a exata situação de nossa alma, temos de fabricar continuamente novos cartões de referência. Temos de varrer o aposento, de arejá-lo, de trocar a água doa vasos de flores. Em outras palavras, você vai viver para sempre dentro de sua própria biblioteca.



Hakuri Murakami

Kafka à beira mar


o vício e o inevitável



Me pergunto se todas as vidas são tão vertiginosas e caóticas como a minha. Será que todos vivem tão desesperadamente? É insuportável. Às vezes, penso que preciso me refrear um pouco. Outras vezes, penso que já está tudo feito. E não tem volta. Quando a gente escreve até transformar a escrita em vício, a única coisa que se faz é explorar. E para encontrar alguma coisa é preciso ir até o fundo. O pior é que uma vez no fundo, é impossível regressar até a superfície. Não se pode sair jamais.

Pedro Juan Gutiérrez


Na zona diabólica - O insaciável homem-aranha


ternura



Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.


Vinicius de Moraes

Novos Poemas / Antologia Poética


a quenga II



Depois, a rapariga levou Hoshino para a cama e com as pontas dos dedos e da língua acariciou-lhe carinhosamente o corpo, logo conseguindo nova ereção. Firme e rígida, levemente inclinada para a frente como Torrer de Pisa em desfile carnavalesco.

- Viu? você já está pronto para outra sessão – disse ela. Em seguida, dedicou-se a mais uma série de movimentos. – Tem algum pedido especial a fazer? Um pedido do tipo “gostaria de fazer assim, ou assado”? O Coronel Saunders me disse para lhe dar tratamento especial.
- Bem, assim de repente não me ocorre nenhum pedido especial, mas que acha de citar mais alguma coisa do tipo filosófico? Não entendo nada, mas talvez sirva para retardar a ejaculação. Do jeito que vai, não vou conseguir segurar por muito tempo...
- Vejamos então... É um tanto antigo, mas o que acha de Hegel?
- Serve, serve. O que você quiser.
- Pois recomendo Hegel. Antiquado, mas... Tá-rá!, aqui vai um dos oldies but goodies!
- Ótimo.
- “O eu é o conteúdo da relação e a relação mesma”.
- Ahn...!
- Hegel estabeleceu a chamada “consciência-de-si” e diz que o sujeito humano não só tem conhecimento de si mesmo e do objeto separadamente, como também melhor se compreende pela projeção de si sobre o objeto como mediador. Isto é “consciência-de-si”.
- Não entendi nada.
- Em outras palavras, é o que estou fazendo com você neste momento. Para mim, eu sou o si e você é o objeto. Para você, é naturalmente o contrário: você é o si e eu sou o objeto. Neste momento estamos realizando uma permuta de si e do objeto e assim estabelecendo a “consciência de si”. Ativamente.
- Continuo não compreendendo, mas me sinto consolado.
- É o que interessa.



Hakuri Murakami

Kafka à beira mar


sobre a declaração de amor



A linguaguem é uma pele: esfrego minha liguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha liguagem treme de desejo. A emoção de um duplo contato: de um lado, toda um atividade do discurso vem, discretamente, indiretamente, colocar um significado único que é 'eu te desejo', e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a linguagem goza de se tocar a si mesma); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, eu o acaricio (...).



Roland Barthes

Fragmentos de um Discurso Amoroso


assim falou Zaratustra



Amo aquele que ama sua virtude, porque a virtude é vontade de extinção e uma seta do desejo.

Amo o que não reserva para si uma gota do seu espírito, mas que quer ser inteiramente o espírito da sua virtude, porque assim atravessa a ponte como espírito.

Amo o que faz da sua virtude a sua tendência e o se destino, pois assim, por sua virtude, quererá viver ainda e não viver mais.

Amo o que não quer ter demasiadas virtudes. Uma virtude é mais virtude do que duas, porque é mais um nó que a que se ata o destino.

Amo o que prodigaliza a sua alma, o que não quer receber agradecimentos nem restitui, porque dá sempre e não quer se poupar.



Friedrich Nietzche


o querer e o poder



Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.



João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


a importância do amor que acaba



Foi muito importante para mim conhecer um amor assim fiel, verdadeiro, caloroso. Ele tocou profundamente meu coração, e eu lhe retribui com felicidade tal, que, se você ainda me quiser bem, não deve lamentá-lo; não se lastime por ter me dado tanto, pois tudo isso foi recebido com muito reconhecimento. A vida é curta e fria, sim, e é por isso que você estaria errado de dispensar sentimentos como os nossos, quentes, intensos. Não fomos loucos por nos amarmos assim [...], nós nos tornamos felizes por algum tempo, verdadeiramente felizes, e isso é mais do que algumas pessoas obterão de suas vidas, eu jamais o esquecerei e você se lembrará disso, às vezes, espero.



Simone de Beauvoir

Cartas a Nelson Algren - Um amor transatlântico [em dezembro de 1948]


da perdição



começa-se a escrever com gana, porém há um momento em que a pena não risca nada além de tinta poeirenta, e não escorre uma gota de vida, e a vida está toda fora, além da janela, fora de você, e lhe parece que nunca mais poderá refugiar-se na página que escreve, abrir um outro mundo, dar um salto. Quem sabe é melhor assim; talvez quando escrevia com prazer não era milagre nem graça: era pecado, idolatria, soberba. Então estou fora disso tudo? Não, escrevendo mudei para melhor: consumi apenas um pouco de juventude ansiosa e insconsciente. De que me valerão estas páginas descontentes? O livro, o vazio, não valerá mais do que você vale. Não há garantias de que a alma se salve ao escrever. Escreve, escreve, e sua alma já se perdeu.



Italo Calvino

O Cavaleiro inexistente


sete chaves



Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha
grande história passional, que guardei a sete chaves,
e meu coração bate incompassado entre gaufrettes.
Conta mais essa história, me aconselhas como um
marechal do ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo
fogo. Mais um roman à clé?
Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher
moderna.
Nem te conheço.
Então:
É daqui que eu tiro versos, desta festa – com
arbítrio silencioso e origem que não confesso –
como quem apaga seus pecados de seda, seus três
monumentos pátrios, e passa o ponto e as luvas.


Ana Cristina Cesar

A teus pés


das primeiras questões



Mas, na verdade, será atroz o peso e bela a leveza?

O mais pesado fardo nos esmaga, nos faz dobrar sob ele, nos esmaga contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o peso do corpo do masculino. O fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intensa realização vital. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida e mais ela é real e verdadeira.

Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes.

Então, o que escolher? O peso ou a leveza?

[...]

Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado negativo. Teria razão? Essa é a questão? Uma coisa é certa. A contradição pesado-leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições.



Milan Kundera

A insustentável leveza do ser


a quenga



A rapariga guiou Hoshino para fora dos limites do santuário e entrou num motel nas proximidades. Encheu a banheira, despiu-se primeiro num único movimento sinuoso e depois tirou as roupas do rapaz. Já na banheira, a rapariga lavou-o meticulosamente, passou a língua por todo o seu corpo e depois se dedicou à felação com apuro e arte. Muito antes de pensar em qualquer coisa, Hoshino já tinha ejaculado.

- Caramba! nunca experimentei nada tão fantástico! - comentou o rapaz afundando lentamente na água quente.
- E isso é apenas o aperitivo - disse a rapariga. - O próximo passo é muito, mas muito mais fantástico.
- Mas gostei do aperitivo, realmente.
- A que ponto?
- A ponto de não conseguir pensar nem no passado, nem no futuro.
- "O presente puro é o inapreensível avanço do passado a roer o futuro. Para falar a verdade, toda percepção já é memória."

Hoshino ergueu a cabeça, e boquiaberto, fixou o olhar no rosto da rapariga.

- Que é isso? - perguntou.
- Henri Bergson - respondeu ela lambendo um resto de sêmen na ponta do pênis. - Maéraememóra.
- Não entendi.
- Matéria e memória. Nunca leu?



Hakuri Murakami

Kafka à beira mar


instrucciones para dar cuerda al reloj



Allá al fondo está la muerte, pero no tenga miedo. Sujete el reloj con una mano, tome con dos dedos la llave de la cuerda, remóntela suavemente. Ahora se abre otro plazo, los árboles despliegan sus hojas, las barcas corren regatas, el tiempo como un abanico se va llenando de sí mismo y de él brotan el aire, las brisas de la tierra, la sombra de una mujer, el perfume del pan.

¿Qué más quiere, qué más quiere? Atelo pronto a su muñeca, déjelo latir en libertad, imítelo anhelante. El miedo herrumbra las áncoras, cada cosa que pudo alcanzarse y fue olvidada va corroyendo las venas del reloj, gangrenando la fría sangre de sus rubíes. Y allá en el fondo está la muerte si no corremos y llegamos antes y comprendemos que ya no importa.



Júlio Cortázar

Historias de Cronópios y de Famas


autoconhecimento



Sim, ela sentia dentro de si um animal perfeito. Repuganava-lhe deixar um dia esse animal solto. Por medo talvez da falta de estética. Ou receio de alguma revelação... Não, não - repetia-se ela - , é preciso não ter medo de criar. No fundo de tudo possivelmente o animal repugnava-lhe porque ainda havia nela o desejo de agradar e ser amada por alguém (...) Porque a melhor frase, sempre ainda a mais jovem, era: a bondade me dá ânsias de vomitar. A bondade era morna e leve, cheirava a carne crua guardada há muito tempo. Sem apodrecer inteiramente apesar de tudo. Refrescavam-na de quando em quando, botavam um pouco de tempero, o suficiente para conservá-la um pedaço de carne morna e quieta.



Clarice Lispector

Perto do Coração Selvagem


o sentir e as idéias



quando amamos, não cessamos de nos fazer indagações: se é honesto ou desonesto, se é inteligente ou estúpido, aonde nos levará este amor, e assim por diante. Se isto é bom ou mau não sei dizer, mas que atrapalha, naõ satifaz e irrita, isto eu sei.


Eu compreendi que quando se ama, é necessário nos pensamentos sobre esse amor, partir de algo mais elevado, mais importante do que infelicidade ou felicidade, pecado ou virtude no seu sentido corriqueiro, ou então não se deve pensar de todo.



Anton Tchekov

Do amor

dos caminhos



Quando vivemos nossa vida, é preciso aceitar também o erro, sem o qual a vida não será completa: nada nos garante - em nenhum instante - que não possamos cair em erro ou em perigo mortal. Pensamos talvez que haja um caminho seguro; ora, esse é o caminho dos mortos. Então nada mais acontece e em caso algum ocorre o que é exato. Quem segue o caminho seguro está como que morto.



Carl Gustav Jung

Memórias, sonhos e reflexões


das revelações



Porque você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se recusar a ver, o tempo que quiser: até o fim da sua maldita vida, você pode recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu lugarzinho confortável. Mas a partir do momento em que você vê, mesmo involuntariamente, está perdido: as coisas não voltarão a ser mais as mesmas e você próprio não será o mesmo. O que vem depois, não se sabe.



Caio Fernando Abreu

Eles, em O Ovo Apunhalado


veja bem



O único milagre que podemos fazer será o de continuar a viver, disse a mulher, amparar a fragilidade da vida um dia após outro dia, como se fosse ela a cega, a que não sabe para onde ir, e talvez assim seja, talvez ela realmente não o saiba, entregou-se às nossas mãos depois de nos ter tornado inteligentes, e a isto a trouxemos



José Saramago

Ensaio sobre a Cegueira

o jagunço e a arte



'Você tem saudade de seu tempo de menino, Riobaldo?' – ele me perguntou quando eu estava explicando o que era o meu sentir. Nem não. Tinha saudade nenhuma. O que eu queria era ser menino, mas agora, naquela hora, se eu pudesse possível. Por certo eu já estava crespo na confusão de todos. Em desde aquele tempo eu já achava que a vida da gente vai em êrros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava.


João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas


muito simples


Minha vida é feita de fragmentos (...). Um amontoado de fatos que só a sensação é que explicaria.

De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é.

[...] a doçura é tanta que faz insuportável cócega na alma. Viver é mágico e inteiramente inexplicável.


Clarice Lispector

Um Sopro de Vida (Pulsações)